sábado, 12 de setembro de 2009

...do alto de nossa imortalidade

LI A SEGUINTE passagem em Lições de Abismo, de Gustavo Corção. A traumática proximidade (e certeza) da morte através de uma doença irreversível leva o protagonista a uma leitura diferente do curto trecho de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Em dois ou três parágrafos que seguem, Corção escreve que já havia apreciado aquelas mesmas páginas quando mais moço, “do alto de sua imortalidade”. Profundamente cristão, o autor quer implicar a nós, leitores, no que estamos lendo. Como ele leu Tolstoi, nós agora lemos Corção “do alto de nossa imortalidade”. Há nele um esforço de trazer à consciência aquilo que já sabemos, embora incapazes de acreditar: nossa própria mortalidade. Morre-se sempre um outro homem, um homem-em-geral; mas nunca eu. E como solução para a morte, para aquilo em relação a que em nosso íntimo sempre tivemos a absoluta certeza e convicção de que nunca chagaria até nós, há Cristo. Em contraponto ao homem-em-geral, seja ele Caio ou Sócrates (vai depender do manual de lógica que se utiliza), o homem singular, com seus pensamentos, emoções, memória, história. A angústia provém do fato de que, na verdade, este homem singular sofre o que o homem-em-geral sofre, que é ser mortal, com a vantagem para o homem-em-geral de não ter sentimentos, pensamentos, memória ou história. Isto talvez porque ele não exista senão nas páginas de um livro de escola, como o exemplo de um silogismo que funciona muito bem para uma aula, mas nunca para aquele que lê tais premissas e conclusões.

“Ivan Ilitch, vendo que ia morrer, desesperava-se. No fundo da alma sabia, estava certo que ia morrer, mas era incapaz de habituar-se à idéia; não a compreendia sequer; não conseguia realmente assimilá-la. O exemplo de silogismo que aprendera no manual de Kieseweter, “todos os homens são mortais, ora, Caio é homem, logo Caio é mortal”, parecia-lhe exato enquanto se tratasse de Caio, mas não quando se tratasse dele, Ivan. Caio era homem, um homem, homem-em-geral, logo era forçoso que morresse. Mas ele, Ivan, não era Caio; nem era um homem-em-geral. Era Ivan, um ser à parte, totalmente à parte dos outros seres. Era o pequenino Vánia para a sua mãe, para o seu pai, para Mítia e para Volódia. (...) Em todas as alegrias, em todos os sofrimentos, em todos os entusiasmos da infância, da adolescência e da juventude, ele era sempre Vánia. Conhecia Caio, porventura, o cheiro daquela bola de couro com que Vánia brincava? Beijava Caio, como Vánia, a mão de sua mãe? Ouvia por um acaso o ruge-ruge do vestido de seda quando ela passava? (...) Ah! e amara ele, Caio, como Vánia tinha amado? Ou como Vánia, não, como Ivan Ilitch, seria ele capaz de presidir uma sessão do tribunal? Caio é com efeito mortal, e é justo que morra. Mas eu, Vánia, Ivan Ilitch, com todos os meus pensamentos, com todos os meus sentimentos, sou outra coisa, completamente outra, e parece-me impossível que deva morrer. Seria horrível demais. Se eu tivesse de morrer (como Caio), bem havia de saber; uma voz interior dizia-mo. Mas nunca me disse ela tal coisa. Eu, e cada um de meus colegas de lógica, compreendemos muito bem que havia um abismo entre Caio e nós. E eis que agora... Não! É impossível. E contudo assim é. Mas como? Como compreender isso?” (Gustavo Corção, Lições de Abismo, Pp 35, 36)

sábado, 22 de agosto de 2009

Lolita

A escrita do livro mais conhecido de Vladimir Nabokov, Lolita, me causou certo espanto pela sua capacidade de penetrar em certas obscuridades. Isto a que o livro se refere,  o fascínio de um homem de meia idade por uma garota de doze anos, toca a leitor de modo especial, fazendo com que a sua sensibilidade ganhe proporções artísticas, o que o leva a reconhecer certa superioridade da arte em relação à moral e à lei. Se o livro foi proibido nos EUA é porque a censura limitou-se à estória contada e não soube reconhecer o valor da obra como um grande feito de linguagem. A que categoria pertence o objeto do amor de Humbert? A das ninfetas. E Lolita é o mais puro exemplar dessa espécie, um “puro sangue”, diria. É preciso atentar-se às metáforas usadas e o "lugar" sagrado delas, que não é espacial. Em sua ilha de tempo, reúnem elas a contradição: são crianças e putas, que vivem a infância e passeiam em espírito pelas regiões do erótico, exalando prazer como um perfume embalsamando um ambiente. A felicidade delas é com o tempo presente. Futuro elas não têm, pois vivem pouco. Talvez Humbert quis beber nelas um pouco de juventude e, com isso, quem sabe driblar a irreversibilidade do tempo, sentir-se eterno durante os instantes de sua contemplação.

“Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza — que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares proponho dar o nome de 'ninfetas'. O leitor terá notado que substituo a noção de espaço pela de tempo. De fato, gostaria que ele visse 'nove' e 'catorze' como pontos extremos — as praias refulgentes e os róseos rochedos — de uma ilha encantada onde vagam essas minhas ninfetas cercadas pelas brumas de vasto oceano. Será que todas as meninas entre esses limites de idade são ninfetas? Claro que não. Se assim fosse, nós que conhecemos o mapa do tesouro, que somos viajantes solitários, os ninfoleptos, teríamos há muito enlouquecido. Tampouco a beleza serve como critério; e a vulgaridade, ou pelo menos aquilo que determinados grupos sociais entendem como tal, não é necessariamente incompatível com certas características misteriosas, a graça preternatural, o charme imponderável, volúvel, insidioso e perturbador que distingue a ninfeta das meninas de sua idade, as quais, incomparavelmente mais sujeitas ao mundo concreto dos fenômenos que se medem com relógios, não têm acesso àquela intangível ilha de tempo mágico onde Lolita Brinca com suas companheiras. Dentro dos mesmos limites de idade, o número de genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem atrativos, ou apenas “bonitinhas” e até mesmo “adoráveis”, que são criaturas essencialmente humanas — comuns, rechonchudas, informes, de pele fria e barriguinha proeminente, usando tranças —, capazes ou não de transformarem-se em mulheres de grande beleza (basta ver aquelas garotas gordotas, de meias pretas e chapéus brancos, que se metamorfoseiam em estonteantes estrelas de cinema). Confrontado com a fotografia de um grupo de escolares ou escoteiras e solicitado a apontar a mais bonita entre elas, um homem normal não escolherá necessariamente a ninfeta. É necessário ser um artista ou um louco, um indivíduo infinitamente melancólico, com uma bolha de veneno queimando–lhe as entranhas e uma chama supervoluptuosa ardendo eternamente em sua flexível espinha, afim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis — a curva ligeiramente felina de uma maça do rosto, uma perna graciosa coberta de fina penugem, e outros indícios que o desespero, a vergonha e lagrimas de ternura me impedem de enumerar —, o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. Elas não a reconhecem como tal, e a própria ninfeta não tem consciência de seu fantástico poder." (Lolita, Vladimir Nabokov, Pp. 18 e 19)

sábado, 8 de agosto de 2009

O lamento das coisas

Em O Lamento das Coisas, de Augusto dos Anjos, o poeta se coloca à escuta de tudo o que não é aproveitado, de tudo o que se perde. E dessa “energia” desperdiçada ouve-se um choro. Vidas que se perdem pelo fato mesmo de nascerem, riquezas que somem na promiscuidade esplêndida das moléculas: bem ou mal aproveitados os talentos, a natureza é indiferente a qualquer um deles. Em outro lugar, refere-se à natureza como “Semeadora de defuntos”. Não seriam os seus versos o "lamento" de quem ou do que irá se perder para nunca mais? De um ateísmo mórbido, são com os sagrados termos das ciências que os Anjos de Augusto fazem as suas preces. A religião profana que congrega tem em seu livro santo o Apocalipse no lugar do livro de Gênesis.


O lamento das coisas

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

sábado, 25 de julho de 2009

Entre dois mundos

COM UMA capacidade única de dizer o que até então parecia ser impossível de ser posto em palavras, bem no início do primeiro volume Proust descreve o momento entre o sono e a vigília: já não se dorme mais nem ainda se está acordado. Esta zona intermediária de indistinção e de suspensão do tempo tem a memória como o seu correlato de ordem. Inicialmente as épocas vividas aparecem a ele (narrador) de modo simultâneo e, em seguida, em sucessão, como que para tirá-lo do vazio e repor as coisas nos seus devidos lugares. Com isso é recriado o seu mundo e o seu tempo, que insiste colocando os já idos no passado. A sensação de existência, tão comum a tais momentos que nos pegam de surpresa (ou nós os pegamos?), é a experiência da negação de parâmetros localizadores nos eixos possíveis. Tais localizadores, artifício que forja a irrealidade das distinções na realidade do indistinto é o que dá consistência e projeta finalidades. Em outras épocas, chamou-se isso de essência.

"Assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas; mas aí a lembrança – não ainda do local em que me achava, mas de alguns outros que havia habitado e onde poderia estar – vinha a mim como um socorro do alto para me tirar do nada, de onde não poderia sair sozinho; passava em um segundo por cima dos séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, depois de camisas de gola virada, recompunha pouco a pouco os traços originais de meu próprio eu." (Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 23)

sábado, 18 de julho de 2009

Elogio da idéia de superfície

COM ESTES ídolos antigos que perduram até os nossos dias por meio de rituais dos mais variados que os atualizam, dificilmente poderíamos esperar uma valorização da superfície, do que é superficial. Com estes pilares de sustentação, sofremos a exigência do aprofundamento e sonhamos a leveza do raso. E como sair do primeiro em direção ao segundo? Na literatura esta impotência foi destacada por Michel Tournier. O trecho de seu livro selecionado hoje consiste justamente num elogio à superfície. O nosso vício na profundidade desencadeia em nós certas preferências cuja libertação teria implicações naquilo que somos. Preferências do tipo do entendimento em detrimento ao sensível, da verdade oculta em detrimento às impressões aparentes, do eterno em detrimento ao provisório, do sentido das palavras ditas em detrimento à voz de quem fala, saber quem está comigo em detrimento a um bom momento compartilhado, do sexo em detrimento ao corpo e pele. À luz destas considerações, filósofos de certas escolas, religiosos, maus amantes e canalhas não distinguem de natureza.

“(...) a noção de profundidade, de que nunca até agora pensara em estudar o uso que se faz em expressões como ‘um espírito profundo’, ou ‘um amor profundo’... Estranha prevenção essa que valoriza cegamente a profundidade à custa da superfície e que faz com que o ‘superficial’ signifique não ‘de vasta dimensão’, mas sim de ‘pouca profundidade’, enquanto ‘profundo’ significa, pelo contrário, ‘de grande profundidade’ e não de ‘fraca superfície’. E, no entanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor – caso possa ser medido – pela importância da sua superfície do que pelo seu grau de profundidade. Porque eu meço o meu amor por uma mulher pelo fato de que eu amo igualmente as suas mãos, os seus olhos, a maneira como anda, a roupa que usa, os seus objetos familiares, aqueles que a sua mão aflorou, as paisagens onde a vi evoluir, o mar onde se banhou... Tudo isso é bem a superfície, parece-me! Enquanto um sentimento medíocre visa diretamente, em profundidade, o próprio sexo e deixa tudo o mais numa penumbra indiferente.” (Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico - Michel Tournier)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A peste: o sonho da festa ou um pesadelo político?

O TEXTO de hoje é de Michel Foucault. Ele nos faz ver o a priori histórico político que tem a sua gênese no período que vai do final do séc. XVIII ao início do XIX. A ruptura com o mundo clássico que caracteriza a modernidade, segundo o recorte do filósofo, se dá no intervalo destes 50 anos. Foucault foi sensível ao nível transcendental a partir do qual uma nova forma de exercício do poder pôde aparecer. Este "fundo" inventado por nosso tempo consiste na idéia de iminência do perigo, que sob diversas formas se encarna: doentes, loucos, delinqüentes, monstros, os de sexualidade polimorfa. A peste enquanto metáfora representa a ameaça deste mal e a possibilidade de sua irrupção lá onde não se imagina e quando menos se espera. Como resposta à generalização de uma insegurança forjada, o Poder Disciplinar. A hipótese destes lampejos de desordem e morte justifica a originalidade deste tipo de poder. Por trás das novas técnicas de esquadrinhamento do espaço e do tempo em nome da seguridade da vida, lê-se o perigo do fim das distinções e das separações entre os seres, da promiscuidade das identidades, de um gozo sem limite que só se sacia com seu próprio aniquilamento.

“Houve em torno da peste uma ficção literária da festa: as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa. Mas houve também um sonho político da peste, que era exatamente o contrário: não a festa coletiva, mas a penetração do regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento capilar do poder; não as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu verdadeiro lugar, de seu “verdadeiro” corpo e da “verdadeira” doença. A peste como forma real e, ao mesmo tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos contágios, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem.” (Vigiar e Punir - Michael Foucault p.164)

terça-feira, 14 de julho de 2009

O espelho de Machado

A IDÉIA de trazer um pequeno fragmento do conto O espelho de Machado de Assis veio a partir do Edgar Allan Poe postado ontem. Ora, sabe-se que o personagem deste conto havia se tornado alferes, e por causa disso o motivo de orgulho da família. Tal reconhecimento por parte de alguns - e inveja, de muitos outros - insuflava a sua alma (exterior, segundo a filosofia do conto). Todos estavam sendo testemunhas do que ele agora era, com isso modificando a sua essência sem que ele percebesse: a presença alheia tornara-se indispensável para sentir-se vivo. Como vinha de fora, de seu posto militar, esta sua nova essência adquiria solidez no outro. Entre o patrão (o Estado) e os seus familiares, temos um personagem reduzido à pura função que exerce. A angústia se inicia quando a ausência destes coadjuvantes o conduz à experiência de uma solidão corrosiva: seu ser vai embora junto à saída dos outros da casa. (Afastado dos outros, afastado de si.) No auge do desespero o tempo se torna sensível nas sucessivas batidas da pêndula do velho relógio, trazendo à superfície a negatividade (que o nada representa) recalcada pela presença alheia. As identidades cuja existência depende do outro tem na solidão uma poderosa inimiga. Solução para o tormento de sua alma: duplicação de si em si mesmo através do recurso do espelho mediando a ambos, no ponto exato entre aquele que vê e aquele que é visto. Com o reflexo fardado de seu posto no espelho, a sua imagem é recomposta e a calma retomada.

"As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. (...) Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte alguma... Riem-se?" (Machado de Assis – O espelho)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Poe e a sua sentença

AS POUCAS palavras hoje postadas são do escritor Edgar Allan Poe. Elas estão em seu famoso conto O poço e o pêndulo. É interessante notar o que perde aquele que nos narra a história após saber da fatalidade que espera por ele: perde o poder de significação que as palavras exercem. A última coisa possível de se ouvir é a sua própria condenação, pois a partir deste momento tudo é barulho e excessivamente material: o que resta das palavras é o seu puro som. E esta voz bruta, desprovida de sentido, o leva à perda de critérios para julgar se o que lhe aparece resulta de delírio ou se vale por si mesmo. Em seguida, temos a vertigem do "moinho", cuja associação teve como causa o ruído dos confusos sons que produziam as bocas sem corpos daqueles que o condenavam. Se lá havia corpos, estes eram sem substância, como as suas vozes sem a ancoragem de um sujeito. Mas o que aqui nos interessa é: quem são tais juízes por cujas bocas a “terrível sentença de morte” chegava aos ouvidos do condenado? Que malditos lábios proferiam tal verdade? Nada é mais certo que o fato de serem eles todos mortos se considerados a partir do mundo (o do narrador) que também está sendo sentenciado à morte junto a seu representante retardatário: o mundo e o homem antigos cedendo lugar a um mundo e a um homem novos. Poe, como Baudelaire e mais tarde Proust, é a expressão na literatura de uma profunda mudança que se deu de forma lenta e gradativa. A vertigem referida é a do desaparecimento da possibilidade de defesa de um fundamento ontológico: o infeliz do conto sente a vertigem nele mesmo, no interior de si; experimenta a morte antes mesmo de ter que morrer. Deslocamento, portanto, do vazio, do nada fundamental, da “noite do mundo” (como nos diria Hegel), da negatividade absoluta, que antes pertencia a um lugar seguro além das fronteiras da esfera da vida para, agora, habitar em seu interior, em seu núcleo. Há quase exatos dois séculos vida e morte deixam de se separar por fronteiras nítidas e reais. Quando se vai ao cume da vida, ao seu mais íntimo, ao invés de lá encontrá-la em sua pulsante efervescência (o espírito puro ou a centelha divina), isto com o que se deparará será o seu exato oposto: o nada, um vazio desesperador, a morte já presente e triunfante antes mesmo de sua chegada derradeira. Vamos ao texto:

“A sentença – a terrível sentença de morte – foi a última frase que chegou, claramente, aos meus ouvidos. Depois, o som das vozes dos inquisidores pareceu apagar-se naquele zumbido indefinido de sonho. O ruído despertava em minha alma a idéia de rotação, talvez devido à sua associação, em minha mente, com o ruído característico de uma roda de moinho. Mas isso durou pouco, pois, logo depois, nada mais ouvi.”

domingo, 12 de julho de 2009

Os amores e os lugares

FALAR de um livro para alguém que não o tenha lido é sempre muito difícil. Ao mesmo tempo que não conseguimos guardar para nós a beleza do que nos foi trazido pela leitura, os adjetivos que usamos na tentativa de transmitir a impressão que a obra nos causou se mostram impotentes. Esta angústia entre a necessidade de expressão e a impossibilidade da mesma posso sentir com toda força nos períodos que leio Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Por esta razão, o que hoje escolhi deste autor na minha opinião exprime o que em sua obra é de grande importância e de difícil conversa: a ligação necessária dos amores aos lugares, isto é, dos sentimentos aos espaços. Isso ficará claro através do trecho citado do livro logo a seguir. Da noção comum de neutralidade do espaço (simples receptáculo vazio dos corpos, aquilo que confere extensão às coisas) à de determinação do que a ele não se reduz, que é o próprio sujeito e seus afetos. Qual será a natureza desta relação? As cartas de amor em geral começam falando de tudo o que cerca os amantes, como a música que tocava no momento do primeiro encontro, as árvores do local, as novas cores trazidas à vida pelo dia tão milagroso e único. Quase como um simples detalhe em meio a este cenário, o objeto amado, aquela(e) à luz de quem tudo adquire nova significação e brilho, como que um elemento fora da série mas condição de possibilidade dessa série mesma. Por isso, a pergunta: quando se ama, ama-se alguém ou a um cenário? Será aquela(e) que se ama o álibi de um desejo ainda mais profundo, que é o de se perder na dissolução e coincidência total com um lugar que se gosta de estar?


“Mas se esse desejo de que me aparecesse uma mulher acrescentava aos encantos da natureza algo de mais excitante, os encantos da natureza, em troca, ampliavam o que poderia haver de demasiado restrito no encanto feminino. Parecia-me que a beleza das árvores era sua beleza e que a alma daqueles horizontes, da aldeia de Roussainville, dos livros que eu estava lendo, seu beijo ma revelaria; e como minha imaginação recobrava forças ao contato de minha sensualidade, e minha sensualidade se expandia por todos os domínios de minha imaginação, meu desejo não tinha mais limites. É que também a passante que meu desejo chamava afigurava-se-me não um mero exemplar desse tipo geral, a mulher, mas um produto necessário e natural daquele solo. (...) Vagar assim pelos bosques de Roussainville sem uma camponesa a quem beijar, era não conhecer o tesouro oculto daqueles bosques, sua beleza mais profunda. Aquela rapariga que eu imaginava sempre rodeada de folhagens era também como uma planta local, apenas de espécie mais elevada que as outras e cuja estrutura me permitisse sentir, muito mais de perto que as demais, o sabor profundo da terra.” (Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 201, 202)

(BRUNO HOLMES CHADS, 12 de julho de 2009)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A Mulher, a Modernidade e o Artifício

A SEGUIR, um magnífico trecho de um texto de Charles Baudelaire, intitulado “Sobre a modernidade”. Além de haver aqui um elogio ao artificial, também entrevemos a relação necessária entre a beleza e o artificio da criação de uma boa composição. Eis o que caracteriza a indumentária feminina. Mas por que modernidade no título? Ora, esta consiste no rompimento com o ideal divino e com qualquer realidade transcendente, rompimento e aquisição de indepemdência com o que preexiste à atuação propriamente humana. Com efeito, o prazer estético não provém da contemplação do eterno, mas sim do que é provisório, fugidio na eternidade do seu instante. Da natureza nada podemos esperar que não seja o caos, a desordem, o acaso. Como a mulher, cuja beleza decorre de uma montagem, a arte nada deve à natureza mas somente ao artista que, como um Deus secular, é capaz de criar o novo, fazer com que haja luz lá onde só existem trevas.

“Tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela própria; e os artistas que se dedicaram particularmente ao estudo deste ser enigmático adoram finalmente todo o mundus muliebris quanto a própria mulher. A mulher é, sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas e reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela aparição de uma beldade, separar a mulher de sua indumentária? Que homem, na rua, no teatro, no bosque, não fruiu, da maneira mais desinteressada possível, de um vestuário inteligentemente composto e não conservou dele uma imagem inseparável da beleza daquela a quem pertencia, fazendo assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisível?”


Nota sobre o Romantismo

O TEXTO abaixo foi retirado do apêndicie do livro Le Monde et ses Remèdes, do escritor francês Clément Rosset. A sua obra gira em torno da noção de trágico e de sua defesa. O trecho que se segue condensa o que há de essencial em seu pensamento. Espécie de 'doença da alma', a paixão pelo fixo é a atitude moral por excelência do romantismo e absolutamente contrária a uma atitude verdadeiramente trágica, isto é, de aceitação e principalmente de afirmação da finitude de todas as coisas. Em poucas palavras, ou se ama a morte na atitude mesma de aceitá-la, caso do pensamento trágico, ou se padece de uma melancolia cuja natureza pode ser entendida como sendo o esforço absurdo de negar aquilo de que é impossível escapar.

"É assim que a angústia romântica diante do Tempo não é tanto o sentimento da irreparável fuga dos dias, mas, mais profundamente, o sentimento de que o Tempo, mesmo futuro, mesmo presente, é sempre igualmente inapreensível. O trágico do instante que passa não é que ele se torne irrecuperável tão logo passado, mas que não se possa ficar aí, apreendê-lo, mesmo quando ele passa - de modo que o instante é tão pouco apreensível presente quanto passado. A «fuga do Tempo» não significa somente que o tempo foge para longe de mim no passado, mas sobretudo que ele se apaga progressivamente sob meus passos no momento mesmo em que eu o percorro. O tempo não se retira após se ter dado, mas não se dá jamais: e a angústia diante do tempo, antes de ser um lamento diante do passado irrecuperável, é de início um drama da impossessão, renovado em todos os instantes da vida. A esse respeito é muito notável que o mais profundo escrutador do ciúme que jamais tenha havido desde Racine seja precisamente o autor da La recherche du temps perdu, um homem obsecado pela fuga do Tempo, não por isso que ele passe para nunca mais, mas nisso que desliza sempre e se recusa à toda preensão. É por isso que o ciúme e o sentimento da «escapatória» do Tempo participam de uma mesma natureza, que é a impossessão, a impossibilidade presente de apreender. O tormento do ciúme não é somente que o ser amado não seja seu, mas sobretudo que ele não seja apreensível em si, do mesmo modo que na angústia ligada ao sentimento do tempo, a maior inquietude não é que um tempo passado tenha cessado de vos pertencer, mas bem antes que ele não vos tenha jamais pertencido."