sábado, 12 de setembro de 2009

...do alto de nossa imortalidade

LI A SEGUINTE passagem em Lições de Abismo, de Gustavo Corção. A traumática proximidade (e certeza) da morte através de uma doença irreversível leva o protagonista a uma leitura diferente do curto trecho de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Em dois ou três parágrafos que seguem, Corção escreve que já havia apreciado aquelas mesmas páginas quando mais moço, “do alto de sua imortalidade”. Profundamente cristão, o autor quer implicar a nós, leitores, no que estamos lendo. Como ele leu Tolstoi, nós agora lemos Corção “do alto de nossa imortalidade”. Há nele um esforço de trazer à consciência aquilo que já sabemos, embora incapazes de acreditar: nossa própria mortalidade. Morre-se sempre um outro homem, um homem-em-geral; mas nunca eu. E como solução para a morte, para aquilo em relação a que em nosso íntimo sempre tivemos a absoluta certeza e convicção de que nunca chagaria até nós, há Cristo. Em contraponto ao homem-em-geral, seja ele Caio ou Sócrates (vai depender do manual de lógica que se utiliza), o homem singular, com seus pensamentos, emoções, memória, história. A angústia provém do fato de que, na verdade, este homem singular sofre o que o homem-em-geral sofre, que é ser mortal, com a vantagem para o homem-em-geral de não ter sentimentos, pensamentos, memória ou história. Isto talvez porque ele não exista senão nas páginas de um livro de escola, como o exemplo de um silogismo que funciona muito bem para uma aula, mas nunca para aquele que lê tais premissas e conclusões.

“Ivan Ilitch, vendo que ia morrer, desesperava-se. No fundo da alma sabia, estava certo que ia morrer, mas era incapaz de habituar-se à idéia; não a compreendia sequer; não conseguia realmente assimilá-la. O exemplo de silogismo que aprendera no manual de Kieseweter, “todos os homens são mortais, ora, Caio é homem, logo Caio é mortal”, parecia-lhe exato enquanto se tratasse de Caio, mas não quando se tratasse dele, Ivan. Caio era homem, um homem, homem-em-geral, logo era forçoso que morresse. Mas ele, Ivan, não era Caio; nem era um homem-em-geral. Era Ivan, um ser à parte, totalmente à parte dos outros seres. Era o pequenino Vánia para a sua mãe, para o seu pai, para Mítia e para Volódia. (...) Em todas as alegrias, em todos os sofrimentos, em todos os entusiasmos da infância, da adolescência e da juventude, ele era sempre Vánia. Conhecia Caio, porventura, o cheiro daquela bola de couro com que Vánia brincava? Beijava Caio, como Vánia, a mão de sua mãe? Ouvia por um acaso o ruge-ruge do vestido de seda quando ela passava? (...) Ah! e amara ele, Caio, como Vánia tinha amado? Ou como Vánia, não, como Ivan Ilitch, seria ele capaz de presidir uma sessão do tribunal? Caio é com efeito mortal, e é justo que morra. Mas eu, Vánia, Ivan Ilitch, com todos os meus pensamentos, com todos os meus sentimentos, sou outra coisa, completamente outra, e parece-me impossível que deva morrer. Seria horrível demais. Se eu tivesse de morrer (como Caio), bem havia de saber; uma voz interior dizia-mo. Mas nunca me disse ela tal coisa. Eu, e cada um de meus colegas de lógica, compreendemos muito bem que havia um abismo entre Caio e nós. E eis que agora... Não! É impossível. E contudo assim é. Mas como? Como compreender isso?” (Gustavo Corção, Lições de Abismo, Pp 35, 36)