domingo, 30 de maio de 2010

O piano de Rebecca Horn


Eu não fui ver, mas quem foi me contou, razão suficiente para que me sinta autorizado a comentar. No ccbb, trabalhos de Rebecca Horn estão sendo expostos. Numa de suas obras, a resposta à pergunta “que é arte?” fica bastante evidente. Trata-se de um piano pendurado no teto, executando, de 15 em 15 minutos, os seguintes movimentos: teclas semelhantes a entranhas que saem de seu lugar devido e o tampão que se abre. Por uma engrenagem desconhecida, esses movimentos parciais acontecem num certo ritmo. Mas na verdade não são parciais os seus movimentos: o piano inteiro se transforma, dura como um objeto natural que desabrocha para o sol. O piano de Rebecca desabrocha para o olhar. O instrumento agora não produz ritmo a partir do silencio e som alternados. Possui ele mesmo um ritmo, e seus movimentos nos dão o testemunho. Enfim, não existe aqui fundo fixo contrastando com a figura animada (teclas e tampa). O piano também não toca música, mas o que nos comunica é a sua forma visível; dele nada se ouve, mas apenas se vê. Temos, portanto, um piano sem a finalidade musical, um objeto desprovido de sua função. Essa é justamente a resposta que Rebecca nos dá à pergunta a que me referi acima. O mesmo acontece com o penico de Duchamp: deslocando o objeto de seu contexto, perde ele logo a sua função. E mais: deslocando-o para um museu, vira obra de arte. O que se vislumbra neste gesto é a separação entre a coisa e sua função, que retirando da coisa a sua função resta apenas um real, um substrato material inerte movido por engrenagens. A separação entre coisa e função nos revela que lidamos com elas na medida em que nos relacionamos com a abstração das funções, cuja “matéria” é a expectativa do uso. Daí o efeito de estranhamento quando se está diante de um penico num museu ou de um piano no teto de um museu, estranhamento proveniente de alguns vícios nossos, por exemplo o de perguntar em silêncio “para que serve?” ao que nos cerca. Antes de constituírem objetos extraordinários em si mesmos, belos ou sublimes, os objetos de arte contemporânea equivocam a relação com o ordinário, o comum e a antecipação de seu uso, o tão “natural” e espontâneo afastamento da presença da coisa e de seu instante, simplesmente tratando-os como extraordinários através da mudança do lugar. O teto sobre os pés do piano é levar o chão ao lugar do teto, a terra ao céu, é pôr o profano no lugar do sagrado: eis a inversão de um mundo deslocado. Quando equivocado, o mundo vira de cabeça para baixo. A arte de hoje faz isso.

(Bruno Holmes Chads, 30 de maio de 2010)

Marcha do cotidiano interrompida

No transtorno vivido pela cidade de Niterói nos primeiros dias do mês de abril, algo muito curioso pôde ser observado. Em torno da palavra “caos”, tão freqüente nas bocas dos fluminenses que a pronunciavam em todas as direções, uma certa confusão. A clareza do problema se deu após os rumores de arrastão. O caos, inicialmente natural em razão das fortes chuvas, resvalou para o social. O que era dito nas ruas do bairro de Icaraí na tarde da quinta-feira - 8 de abril - era que um grande arrastão havia começado no centro da cidade, passado pelo ingá e que já havia chegado ao bairro de Icaraí. Niterói, portanto, estava sendo alvo de uma fúria natural e da fúria de moradores dos lugares engolidos pela terra transformada em lama pelas águas despencadas do céu. Em suma, a revolta vinha de cima e de baixo, ameaçando a paz dos moradores deste espaço intermediário. A atmosfera era de suspensão de todas as leis e regras e o poder do Estado mostrava-se impotente aos olhos de todos. Mas não tardou a descobrir que os tais arrastões não passavam de rumores, que talvez no máximo três pessoas haviam quebrado uma loja em momento de fúria por causa da perda da casa em deslizamento. Enquanto alguns lojistas do bairro fechavam as portas de seus estabelecimentos, curiosos olhavam da rua até onde as suas vistas alcançavam em direção ao nada, na expectativa de poder “ver alguma coisa”. Era um misto de horror e curiosidade. Mas por trás do semblante de uma expectativa especial e das rugas de medo nos rostos, notava-se num de seus cantos um certo prazer, diria mesmo uma alegria cerimoniosa, escondida de vergonha por trás da cara do falso, ou melhor, do ambíguo pavor: vivíamos todos dias incomuns, dias de exceção. A “marcha do cotidiano” fora interrompida naquelas horas pelos supostos acontecimentos ocorridos em todas as esferas e experimentávamos agora a multiplicidade dos corpos num espaço bruto ao invés do antigo e entediante restrito ao fluxo de pessoas e coisas segundo regras mais ou menos consentidas. Um desejo obscuro? Possibilidade de realização do que em condições normais seria impossível? Talvez. Mas, repetindo um clichê do meio psicanalítico, queremos realmente o que desejamos? O cinema responde. No prefácio do livro “Hitchcock Truffaut” escrito por Ismail Xavier, é afirmado que uma das razões do fascínio pelo cinema é a experiência do “medo assegurado, a violenta ruptura da ordem moral que os espectadores simulam temer mas desejam”. Quando se está diante (mas à distância) de uma ameaça de fim do que se vive no dia-a-dia, por inverossímil que se apresente, determinadas idéias de prazeres sem limites têm nos entediados amplo terreno fértil. Enfim, estavam todos nesse dia de fato apavorados, menos pelo o que “os perturbadores da ordem” poderiam fazer de mal a eles do que o que eles mesmos, perturbados com o que se depararam dentro de si, eram capazes em situação de suspensão das leis.

(Bruno Holmes Chads, 9 de abril de 2010)