quarta-feira, 20 de novembro de 2013

As artes: questão do Ser, da Realidade ou do Real?

MUITAS VEZES, a resistência de se compreender outra forma de arte diferente da tradicional ou clássica se dá em razão do problema de saber ao que visam estas outras formas estéticas. Se as artes eram condenadas por Platão por serem cópias do que se mostrava – e dentro de seu sistema (pelo menos segundo uma versão mais popularizada de sua filosofia) as aparências possuem menor valor por serem cópias das coisas que realmente são, isto é, do Ser –, as artes, hoje, nunca poderiam ser consideradas da mesma maneira. Quando se está diante de uma obra contemporânea, a última coisa que se deve querer reconhecer nela é qualquer semelhança. Quem tem a semelhança como critério do que deve ser a "boa arte" não será capaz de enxergar mais que pouca coisa, do que resultará em considerações do tipo pseudo-arte, "lixo", isto é, expressões que trazem a marca da frustração de uma experiência nula. Não são, então, as aparências que as artes querem retratar, uma vez que as coisas não servem mais como modelo. Ser artista não é ser fazedor de objetos "parecidos" com outros anteriores no tempo.

Ora, tampouco visa referir-se ao Ser por trás, suporte inteligível do que se vê. O Ser é tradicionalmente da alçada da filosofia. Na tentativa, então, de uma formulação do problema das artes dos tempos atuais, não é exagerado dizer que é o Real de que se trata. E Real não é o mesmo que Ser. Aliás, o surgimento da dimensão do Real só foi possível à custa da perda mesma do Ser. Se na metafísica Ser e Real coincidem, com o fim desse modelo de pensamento desaparece do horizonte o Ser, tornando por este motivo menos suscetível o Real a encobrimentos míticos. Tanto cores e formas regidas pelo princípo de semelhança quanto aqueles discursos que têm a designação como intenção nos aproximam do mito na mesma medida que nos afastam do Real. Não caberia, portanto, às artes, ao menos àquelas que não se prestam a fins de enfeite, o esforço de tocar o Real?

Uma das responsáveis por essa separação entre Real e realidade foi a invenção da fotografia. Com o advento da possibilidade da fixação da imagem através de um meio mecânico, o que ocorre? É aberto um fosso entre representação e referente, o que revela que a realidade vista é também signo, é imagem.

A seguir, dois trechos de dois autores onde tais ideias se concentram:

"Algo muda radicalmente com o advento da arte moderna. Dentro dos limites da metafísica tradicional, a arte trata de aparências (belas) enquanto a ciência trata da realidade por trás das aparências. Numa estranha inversão, a ciência de hoje concentra-se cada vez mais no domínio das aparências, dos processos fenomenais privados de qualquer suporte substancial; assim, não é de admirar que, num contramovimento simétrico, a arte moderna se concentre cada vez mais na Coisa Real. A definição mais sucinta da arte moderna não é a arte "além do princípio do prazer"? Supostamente, apreciamos a arte tradicional, espera-se que ela produza prazer estético, ao contrário da arte moderna, que causa desprazer; a arte moderna, por definição, fere. Nesse sentido exato, a arte moderna é sublime: causa prazer-na-dor, produz seus efeitos por meio do próprio fracasso, na medida em que se refere às Coisas impossíveis. Em contraste, parece que a beleza e o equilíbrio harmonioso são cada vez mais do domínio das ciências: a teoria da relatividade de Einstein, esse paradigma da ciência moderna, foi louvada pela elegância simples; não admira que o best-seller de Brian Greene, que introduz a teoria das supercordas, seja O universo elegante. Assim, o tradicional arcabouço de referência platônico é virado de cabeça para baixo: as ciências tratam de fenômenos, eventos, aparências, enquanto as artes tratam do duro Real; essa "Coisa Real", a luta para retratá-la, é o "objeto" propriamente dito da arte." (Slavoj Zizek, A Visão em Paralaxe, pg. 199, 200)

"Ao cumprir a pauta realista com precisão quase absoluta, a fotografia acaba por abrir uma crise sem precedentes na história da mímesis. Entre a representação e o referente não há mais a distância segura que a pintura tentava ultrapassar. De um só golpe, é a realidade que é posta em questão: seria ela apenas imagem? O real se distancia até se tornar inatingível, enquanto a imagem assume a dupla e paradoxal função de mostrá-lo e escondê-lo ao mesmo tempo." (Tânia Rivera, O Avesso do Imaginário, pg. 53)

domingo, 6 de outubro de 2013

Palavras, Sons, Ruídos, Barulhos

ACREDITO que uma das melhores críticas à palavra já feitas se encontra no filme de Jacques Tati, Les vacances de Monsieur Hulot (1953). Ao longo de todo o filme, o que é trazido para o primeiro plano é o som das coisas. O ruído destituído de qualquer sentido é retirado de sua condição de fundo sonoro e posto diante do espectador. O efeito imediato disso é uma transformação das palavras proferidas e dos escassos diálogos que surgem ao longo do filme: são todos eles relegados a pano de fundo. Há, portanto, uma substituição. Os sons, alguns deles verdadeiros barulhos, tomando o tradicional lugar das palavras reduzem estas a mero cenário sonoro. Com um tal gesto, Tati nivela todas as formas de som mostrando que tudo é ruído e que no mundo não existe outra coisa senão barulhos.

Com exceção da música que faz sua vitrola girar, é claro. Se Monsieur Hulot não fala, não é por uma incapacidade física, mas por uma impossibilidade própria da palavra em dizer. A sua mudez é antes um princípio. Se emite sons, estes provêm ou de pequenos incidentes desastrados ou de sua vitrola que às vezes é posta para funcionar num volume tal que abafa todos os outros, dos sons dos talheres às conversas no salão, chegando mesmo a incomodar, ao que as pessoas reagem indo ao seu quarto cortar-lhe a energia.

Como as palavras têm o mesmo estatuto das outras formas cruas de som, elas nem reproduzem sentidos muito menos se referem às coisas. No filme de Tati, as palavras não têm uma relação de exterioridade com o real, de designação, mas são elas como as coisas, parte do real, e se ultrapassam os limites do que somente são capazes, que é ser som e nada mais, é porque forjam para si uma eficácia tanto na organização quanto na condução do mundo.

As palavras não possuem nenhuma espécie de privilégio e são como tudo mais. A cena que torna ainda mais claro este aspecto é aquela em que um senhor, a bordo do primeiro carro de um comboio, depois de uma breve parada para olhar através do seu binóculo como que na busca de uma direção, diz em alto e bom som "direção, à direita", quando todos vão para a esquerda. E o mais curioso é que também o seu braço, no momento em que ele dá as ordens, aponta para o lado em direção ao qual tudo segue mas oposto àquele a que suas palavras querem conduzir, o que nos mostra que até o corpo de quem profere é surdo às suas ordens.

Há uma independência no desenrolar da realidade quanto ao que é dito. O dizer só é alguma coisa na medida em que é parte do mundo. Já o conteúdo do dizer, isso que se pretende que seja dito através do dizer, isso é o que não há. Onde poderiam tais ordens estar ancoraradas senão neste outro mundo imaterial onde moram os conteúdos dos dizeres? Esse plus da natureza, é isto que é posto à prova quando a impotência da palavra na condução do mundo nos é apresentada.

O filme Les vacances de Monsieur Hulot é um filme sobre a palavra mais do que sobre o som, ou melhor, sobre o som das palavras e das palavras enquanto sons, e se elas são alguma coisa além disso o fazem à custa de uma fraude fadada ao fracasso, pois as palavras não são espírito e mentira tem perna curta.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Que luz? Que mundo?

HÁ UMA série de trabalhos de René Magritte em que se vê uma separação. Tais obras são divididas em uma parte de baixo e uma outra de cima. Na de baixo, há casa ou casas, rua ou um quintal, poste de luz; na de cima, um céu. Mas ambas não chegam a formar um todo porque parecem não se juntar, a não ser forçosamente pela sua disposição numa mesma superfície.

Acrescentem escuridão, silêncio e a atmosfera da alta madrugada à descrição feita da parte inferior, e percorrendo com o olhar em direção ao topo, lá onde a coerência esperava encontrar um céu preto da noite vê-se um céu azul com branquinhas nuvens flutuantes.

Toda a parte de baixo parece dizer respeito ao homem, pois é o cotidiano de seu descanso, o calmo lado das vidas quando em repouso. O céu acima deste "mundo humano" é outro mundo. Neste há indícios de um sol pela presença indireta da uma luz natural: é dia pleno. Portanto, dia ensolarado em cima, noite fechada embaixo. O mundo concreto do homem é aqui retratado como noite, e o da "natureza", como dia.

Mas não existe romantismo de nenhuma espécie aqui. Por que a luz da parte de cima, a luz do dia, não chega à parte de baixo iluminando-a? No que aparenta ser mera diferença de horários na tela contínua ou dois momentos postos em simultaneidade pela perspectiva, tem-se ali dois mundos que não se comunicam entre si, posto que não compartilham o mesmo espaço: os objetos de um não trafegam em direção ao outro sem deixar eles próprios de ser o que são. É em razão de uma tal descontinuidade que a luz de uma parte não transluz na outra parte.

O que permite com que toda essa parte inferior não se perca na indistinção da escuridão e possa então aparecer como imagem é a luz que ela própria produz. Pode-se dizer que uma separação radical entre mundos como a que estes trabalhos de Magritte mostram diz acerca do artifício. É a luz do poste que retira da escuridão absoluta as coisas, permitindo assim a todos que as vejam.

Se é dia ou noite, o que ocorre na "natureza" pouco importa: nada proveniente dela tem alguma determinação no que está embaixo. Essa ruptura radical entre essas duas esferas retira da natureza alguma possível consideração sua do tipo invólucro que conteria os "mundos", o Mundo por excelência, mais fundamental, mais verdadeiro, Mundo para além de todos os outros particulares ou a soma de tudo o que há. O que essa série de obras diz é que não existe um tal mundo comum, solo por onde as coisas passam e a luz atravessa livremente, mas que a natureza é também parcial, porque aquele que a sonha o faz com o material imaginativo que a sua realidade do lado de cá lhe oferece.

O mundo, fechado sobre si e estanque em si mesmo, para que exista só poderá contar com seus próprios recursos, dependerá dele a produção artificial da luz que lhe permitirá vir à aparição. Repetindo, não existe uma meta-luz, causa necessária e absoluta de todo aparecimento. Cabe ao homem somente a possibilidade de habitar o mundo que lhe é próprio; à natureza cabe o estatuto de hipótese de quem vive no interior do que não se comunica com nenhum "de fora".

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O povo não existe

Por enquanto não há como determinar o sentido destas manifestações. Uma coisa só é certa: o traço das diversas posições de todos diretamente envolvidos ou não está sendo delineado com certa nitidez. Isso nos permite ver com uma clareza privilegiada que a ideia de "povo" é uma abstração. Não existe algo como "o povo". Todos quererem saúde, educação, fim da corrupção, segurança, transporte de qualidade, etc. não basta para unir as pessoas num movimento único. O que se via nas ruas eram pedidos de diminuição do estado e mais liberdade ao lado de bandeiras coloridas do movimento gay com siglas de partidos de esquerda; havia ainda aqueles que gritavam contra a própria ideia de partido, pois para eles todo partido – por ser essencialmente desonesto – é desejoso de roubar para si as vantagens e os méritos de uma grande mobilização. A tensão maior portanto era menos a que existe entre os manifestantes e a polícia, 'o povo' e o estado, os homens e as estruturas do poder do que entre os próprios participantes na passeata. Então, o ponto é: o que determina essas tomadas de posição, ou melhor, o que abre o campo dos posicionamentos possíveis? Diria que o que caracteriza as posições dentro do quadro é a consideração do que personifica o MAL causa da impossibilidade do Brasil.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Protesto do dia 17 de junho de 2013

O que na verdade querem aqueles que são a favor do protesto mas contra seus excessos, por exemplo o quebra-quebra de ontem no centro do Rio de Janeiro? Querem um protesto light? Protesto light não existe e se existe não é bem um protesto mas alguma outra coisa que não repercute em absolutamente nada. Será por que o vandalismo soa caótico para eles? Saibam que tais atos "vândalos" possuíam alvos bem específicos e por esta razão não eram um mero caos. A verdadeira demanda do povo, portanto, não deve ser lida na maioria dos cartazes que desfilavam ontem pela avenida ou nas falas e nos cantos entoados, mas exatamente nos próprios excessos. O que destruíram ou o que quiseram destruir é onde se encontra a verdadeira mensagem. Por isso, por trás da aparente falta de unidade das mais diversas insatisfações, diversidade que inclusive impossibilitava com que cada um soubesse afinal o porquê de estar ali, havia uma insatisfação objetiva que teve efeitos objetivos. Quem se envolveu naquele protesto objetivo pagou o preço do risco (de ser preso, de levar tiro de bala de borracha, de morrer). E qual poderia ser outra insatisfação senão com o próprio sistema injusto que funciona por meio da exclusão? Então não é nem Cabral, Dilma, Paes, tampouco os 20 centavos ou o transporte público. Os prédios ontem depredados eram aquilo que personificava esse sistema, a Alerj e os bancos. Os protestantes radicais foram ali um dos poucos que sabiam o que faziam. Os da linha light se mostraram preocupados com os prédios históricos. Mas o que é um prédio que aponta para o passado comparado a um acontecimento que abre espaço para uma nova ordem? As invasões de ontem eram dessa natureza, daí o otimismo próprio do novo frescor de uma outra realidade possível. Hoje, o dia seguinte, à luz do que ocorreu ontem, paira no ar uma certa compreensão do quão performático e artificial é o cotidiano. Finge-se que nada aconteceu para que o ocorrido de ontem perca o peso de um acontecimento. Não duvido que a grande maioria que assistia a tudo pela tv não pensava em seu íntimo que a coisa talvez tenha ido longe demais. É nessas horas que se percebe até que ponto querem que as coisas de fato mudem. A oportunidade está aí. Agora... estamos à altura dela?