terça-feira, 17 de junho de 2014

A opacidade do ato ético

Como ocorre a internalização da lei simbólica, condição necessária para o processo civilizatório? Na busca por uma reposta a essa pergunta, Freud criou o conceito de supereu. Compreendendo a gênese da consciência moral e do sentimento de culpa através desse conceito, ele foi capaz de reconhecer que a socialização se dá à custa de uma repressão dos impulsos sexuais. Se "toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional", então o sentimento de culpa "seria o mais importante problema no desenvolvimento da civilização", diz Freud. Mas, e se os processos de socialização se modificam com o transcorrer da história, o que ocorre com o supereu? Ele se reconfigura. Foi isso o que Lacan percebeu. A sociedade, ao se tornar "não-repressiva" por entrar numa época de universalização do consumo, alterou o funcionamento do dispositivo do supereu. O que se deve, portanto, é justamente compreender essa mudança de um supereu que reprime o gozo através de uma internalização da autoridade paterna de culpabilização para um supereu cuja injunção constante é "goze!". E, como afirma Žižek, nestes tempos de permissividade as injunções superegóicas nunca foram tão fortes.

Conclui-se disso que, longe de termos nos livrado das proibições e entrado numa época livre de toda repressão, o que parece é que estamos ainda mais enredados num processo de culpabilização, só que às avessas: sentimo-nos culpados não por gozar demais, mas por gozar de menos. Ora, nessa dita era "pós-ideológica" do "tudo pode", em que pé fica a discussão em torno da possibilidade de uma ética? Num contexto como o descrito acima, por qual via ainda é possível elaborar uma posição ética?

Comecemos, então, pela exposição de duas posições que ilustram o que poderia ser uma atitude ética. A primeira consiste em "seguir princípios éticos sejam quais forem as consequências no mundo real, de rejeitar como "patológicas" as consequências enquanto critério de valor moral, de insistir na pureza da minha vontade, da minha intenção, como o maior dos critérios." (Slavoj Žižek, A visão em paralaxe. p. 71.)

Essa primeira tentativa de pensar o que poderia ser uma postura propriamente ética se resume na consideração da intenção do agente como o elemento determinante, isto é, toda atitude verdadeiramente ética seria aquela motivada pela boa intenção do sujeito. Se as consequências decorrentes de seu gesto foram como ele previra, isso é algo que escapa à sua alçada. A essa posição uma outra se opõe, a que considera que "a verdade dos meus atos é revelada em suas consequências reais". (Idem, p. 71.)

Temos, portanto, duas diferentes maneiras de caracterizar o que poderia ser a atitude ética, que podem ser resumidas no seguinte dilema: a atitude ética está na intenção daquele que age ou nas consequências da sua ação? Žižek argumenta que as duas posições são problemáticas porque ambas pressupõem uma "harmonia preestabelecida entre sujeito (indivíduo) e substância, a condição fundamentalmente "benevolente" da substância. Mas e se eu não consigo me reconhecer inteiramente na substância (...) porque a substância social de mim mesmo é "má" e, como tal, converte todos os meus atos no oposto do que pretendiam realizar?" (Idem, p. 71.)

Embora não caiba aqui nos aprofundarmos no conceito de substância, vale apresentar um exemplo que o próprio Žižek nos fornece que ilustra bem essa inadequação a que se refere a última citação. A não benevolência da substância com o sujeito que tem como causa a lacuna da subjetividade (moderna) se encontra representada no famoso quadro de Leonardo Da Vinci pintado na aurora da modernidade, a Mona Lisa, quadro em que a figura da mulher no primeiro plano parece discrepante do fundo, como se este fosse uma paisagem artificial do tipo cenário, paisagem outra substancialmente diferente com relação à mulher que posa. A discrepância entre figura e fundo no quadro de Da Vinci é análoga ao desencaixe do sujeito no ambiente. Para Žižek, é essa lacuna intransponível o que impede a qualificação de uma ação como sendo ética a partir tanto das intenções quanto das suas consequências. À luz dessa subjetividade discrepante é que se deve compreender o impasse das duas posições quanto ao valor dos atos – pureza de intenção/consequências reais.

Žižek afirma haver uma terceira posição que não se apóia num meio universal que permitiria julgar as experiências morais. É precisamente neste ponto que podemos introduzir o conceito de ato e ao mesmo tempo avaliar a importância desse conceito na obra de Slavoj Žižek. Se o caminho que Žižek segue é o da ética lacaniana do real por entender que é num tal campo justamente onde ocorre a "batalha do espírito com si mesmo" (Slavoj Žižek, O mais sublime dos histéricos. p. 38.), o que está em jogo aqui são precisamente as coordenadas da própria realidade, como elas são reproduzidas ou ultrapassadas. Ato é, para Slavoj Žižek, o modo por excelência de todo agir autenticamente ético. E ele é por natureza opaco: sua realização sempre implica risco, tanto em relação à imprevisibilidade de suas consequências reais quanto em relação à imprevisibilidade de seu sentido em razão da temporalidade dos juízos morais que tentarão depois localizá-lo. Como diz o próprio Žižek, "não podemos garantir [o sentido de uma ação] com exatidão porque não podemos responder com antecedência pela maneira como nossos atos atuais afetarão nossa visão retrospectiva futura". Esse aspecto da temporalidade dos juízos morais, ao mesmo tempo que elimina a possibilidade de um universal com base no qual poderíamos fazer um julgamento a priori de uma ação e estabelecer o seu sentido, também põe em evidência a contingência que marca a experiência moral do sujeito.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

As duas criações no Gênesis

HÁ DUAS narrativas acerca da origem do mundo e do homem no livro de Gênesis. A primeira começa no versículo Gênesis 1:1 e termina no versículo Gênesis 2:4a. Já a segunda, ela começa no versículo Gênesis 2:4b e termina no final do terceiro capitulo. Ambas as narrativas correspondem a duas tradições: a primeira à tradição sacerdotal; a segunda à iavista.

A narrativa feita pela tradição sacerdotal acerca da origem é uma narrativa cosmogônica. A criação do mundo e de todas as coisas ocorre em seis dias. A criação do mundo, é importante ressaltar, não foi uma criação ex nihilo, o que quer dizer que o mundo não foi criado a partir do nada. Tal interpretação só é possível, obviamente, se o primeiro versículo ("No princípio Deus criou o céu e a terra.") for considerado mais propriamente um título do que de fato o início da narrativa da criação. Se o mundo não foi uma criação ex nihilo, o que é que havia antes da criação? Ora, havia a terra, as águas, o abismo, as trevas, o vento (o sopro de Deus). Podemos, então, interpretar o primeiro dia da criação como o início do estabelecimento do cosmos, outro termo para ordem. A ordem (cosmos) se opõe ao caos primordial descrito em gênesis 1:2. Neste primeiro dia, Deus diz: "Haja luz". No segundo Deus cria o firmamento, separando as águas de cima das águas de baixo. No terceiro, criação dos continentes ao separar as terras secas e criação das ervas e das plantas. (Se Deus não diz às plantas "crescei e multiplicai-vos", e no entanto elas crescem e se multiplicam é porque a relação de causalidade foi estabelecida nesse terceiro dia.) Quarto dia, cria Deus os luzeiros como sinais do dia e da noite (o sol como sinal do dia; a lua como sinal da noite). Em relação a outros povos antigos é excepcional o fato de o sol e a lua, os astros mais visíveis, não serem considerados divindades por parte dos hebreus, mas sim objetos criados por Deus. Outro fato curioso é que a luz que ilumina todas as coisas não provém do sol, já que sua existência é anterior à existência do astro a quem lhe atribuem se fonte. Quinto dia, criação dos peixes, das aves e dos animais que rastejam. No sexto, Deus cria os outros animais, as feras, os animais domésticos e o próprio homem.

A outra narrativa da criação, narrativa feita pela tradição iavista, é antropogônica, isto é, não é exatamente a criação do cosmos que é narrada, como o faz a narrativa anterior, mas a criação do homem. E tudo que existe além do homem foi criado única e exclusivamente para o seu auxílio. Nesta segunda narrativa, o homem é feito de argila e colocado num jardim situado num lugar chamado Éden. Antes do homem não havia plantas, porque não havia quem as cuidasse, nem chuva para irrigá-las. Não havia também os animais. Estes últimos após serem criados para que auxiliassem o homem revelaram-se inadequados para tal propósito. Por enquanto, o termo "homem" se refere ao homem em geral, o ser humano independente do sexo. É com a criação da mulher a partir da costela do homem que esse homem agora parece ser mais propriamente um indivíduo. E o propósito de Deus quando fez a mulher foi o de que esta servisse de auxiliadora do homem de cuja costela fora criada.

Em seguida, o que se lê é a queda do homem. No centro do jardim havia duas árvores: uma da vida e outra do conhecimento do bem e do mal. De todas as árvores Deus permitira que o homem comesse do fruto, com exceção dessas duas localizadas no centro. Seduzida pela serpente, Eva come do fruto da árvore que Deus ordenara que não comesse. Em seguida, ela oferece a Adão o fruto e ele o come. A consequência foi que "os seus olhos se abriram" e passaram perceber que estavam nus. Deus que caminhava (imagem antropomórfica de Deus própria da tradição iavista) no jardim pergunta a Adão "onde estás?". Adão, por causa da vergonha de sua nudez se encontrava escondido. Deus pergunta como sabia ele que estava nu e se havia comido do fruto proibido, ao que responde Adão que fora Eva quem o seduzira a comê-lo. Deus pergunta a Eva por que fizera ela aquilo. Eva, por sua vez, como fizera Adão, transfere a sua culpa à serpente. Deus então castiga cada um de determinado modo: o homem retirará o seu sustento com o suor de seu rosto; a mulher parirá com dor; a serpente comerá pó porque doravante rastejará. Mas de todos os castigos, terá sido o da morte aquele que mais afetou o homem expulso do paraíso e posto numa terra árida de cujo cultivo dependerá o seu sustento? Há uma nota de rodapé na Bíblia de Jerusalém que diz que a árvore do conhecimento do bem e do mal não é simplesmente o símbolo de uma tomada de consciência do que seria o Bem e o Mal, mas que comer de seu fruto, precisamente porque contraria à ordem divina, é um crime à soberania de Deus, o primeiro passo rumo a uma autonomia moral de decisão acerca do que é o bem e o que é o mal, algo que, para a mente divina, só poderia caber a Ele, Deus.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Entre a possessão e a convulsão

EM Vigiar e Punir o objetivo de Michel Foucault foi pensar a formação do corpo do individuo moderno (corpo passível de um conhecimento, produtivo e dócil) – formação que se deu paralelamente ao surgimento do poder disciplinar. Nos trabalhos dos anos seguintes, ao tematizar a sexualidade ele ampliou o seu objetivo para a questão da formação do corpo populacional. Foucault, então, reconhecerá a existência de dois corpos, ou melhor, suas pesquisas terão dois focos, duas maneiras de análise que não se excluem mas se complementam: o poder disciplinar e o poder biopolítico. O primeiro está para o corpo individual como o segundo para o corpo populacional, sendo a sexualidade o derradeiro esteio deste último que visa à gestão da vida. É interessante notar que essa noção de vida nada tem de sublime, de metafísico, mas resulta de operações frias do poder. E não é sem razão que é atribuída à obra de Foucault a novidade de uma reformulação do conceito de poder que leva a cabo. Longe de considerar que os saberes são maneiras de escapar e resistir ao controle, o seu exercício é largamente viabilizado por esses discursos supostamente neutros que se apresentam como gozadores plenos do privilégio do acesso às coisas e à realidade.

Quando é que a sexualidade se torna objeto de um saber médico e de intervenção por parte de determinadas instituições? Em outros termos, quando é que sexualidade entra em cena tornando-se uma preocupação por parte do poder? A resposta a esta pergunta é complexa e não pode ser dada de uma só maneira. É certo que o aparecimento do fenômeno da população demandou novas formas de controle, sendo a sexualidade justamente o ponto preciso onde o poder passou a intervir a fim de gerir esse novo fenômeno. Aqui nos concentraremos especificamente na aula do dia 26 de fevereiro de 1975, oitava aula do curso Os anormais pela seguinte razão: por um lado, o problema da população ainda não estava plenamente formulado, por outro, exatamente neste curso a sexualidade já é vislumbrada como alguma coisa que está se tornando um problema político. Por este motivo, o ano de 1975 parece ser um período intermediário: o problema da sexualidade já começa a ser delineado embora sem antes ainda a questão da população e do poder que dela pretende dar conta estejam colocados. Talvez um dos grandes méritos deste curso seja o de servir àqueles que estudam a obra de Foucault perceberem uma tal guinada a partir da colocação destes problemas inéditos. Foucault toma uma direção específica – e será precisamente isto o que se pretende apresentar aqui – que se consolidou nos anos seguintes da qual resultará na hipótese da biopolítica.

Do que exatamente trata essa aula do dia 26 de fevereiro de 1975? Nela uma importante passagem histórica será abordada, a do mecanismo do poder eclesiástico para o médico. Para mostrar tal passagem Foucault se utiliza do conhecido caso de possessão demoníaca de freiras, em 1632, na cidade francesa de Loudun. Portanto, é na primeira metade do século XVII que Foucault percebe uma tensão entre duas forças. Mas ao que visavam tais forças, ou melhor, o que eram tais forças? São elas forças interpretativas. Isso nos leva a considerar que a força do poder, antes de ser física, são forças de interpretação, isto é, são forças de produção de sentido. O exemplo dado por Foucault diz respeito às freiras do convento das ursulinas na cidade de Loudun que começaram a apresentar determinados sintomas, como contorção, gritos e gemidos, além de blasfemarem e emitirem vozes distorcias. O que seria isto? A igreja de imediato tratou do caso como o de possessão, afirmando que o que estava nas freiras, o responsável por aquilo nelas, era o demônio. Coincide com tal período o aumento da importância da medicina, que foi progressivamente dominando o território interpretativo, motivo pelo qual não pôde se calar diante deste ocorrido em Loudun. O que eram, para a medicina, as "manifestações demoníacas"? Chamou-as de convulsão. Têm-se, portanto, mais do que dois nomes (possessão/convulsão), duas interpretações, dois sentidos do fato.

Nomear algo é sempre já situar-se num determinado campo do poder. Mas Foucault, na tentativa de se referir a tal fato sem no entanto partir dos pressupostos definidos pelo poder, afirma que tanto possessão quanto convulsão foram esforços de determinar algo que por si mesmo já era da ordem da resistência. O que é isso que ocorria com as freiras por trás do que a igreja e a medicina diziam? É a manifestação de uma verdade na forma de resistência contra a exigência de que "tudo deve ser dito! ". Eis porque aqueles corpos, sem dúvida que à revelia da própria pessoa, gritavam, se debatiam e se contorciam, corpos dos quais era exigido que tudo dissessem. Mas à expansão da igreja houve já outras maneiras de resistência. No século anterior, é na figura da feiticeira que tal resistência ao poder eclesiástico pode ser encontrado. Quem eram as feiticeiras? As feiticeiras eram mulheres do interior onde a igreja não tinha ainda bastante penetração. A feiticeira, sendo uma figura do campo, é exterior à igreja, predominantemente urbana. A resistência que caracteriza a feiticeira provém portanto de fora da institucionalização da palavra de deus que vinha se alastrando. As feiticeiras não eram de fato adoradoras do demônio, mas mulheres que – pelo seu afastamento dos grandes centros urbanos, moradoras da mata e do interior do país, isto é, à margem das cidades onde a pastoral cristã era certa e incisiva – representavam pontos contra os quais cedo ou tarde a igreja teria que se chocar, e quando se chocou, recaiu sobre elas todo um imaginário construído a partir do anverso da ideia que a igreja fazia do divino. Estas são as feiticeiras, mulheres que encarnavam traços essencialmente do imaginário do cristianismo do século XVI. E as possessas? A análise destas deve ser feita tendo como pano de fundo esse caso das feiticeiras. As possessas eram, em primeiro lugar, uma resistência no interior mesmo da igreja. Não foram as freiras de um determinado convento que ficaram possuídas? Em segundo lugar, o convento em que essas freiras habitavam estava situado na cidade, isto é, localizado num centro urbano ao invés de em algum lugar longínquo. Se essas freiras dominadas pelo demônio ou que sofriam de convulsões foram exatamente aquelas que em todos os sentidos habitavam o interior da igreja, eram elas que mais se expunham à injunção do "confesse!" própria do "governo da carne" do poder eclesiástico. A possessão é, portanto, uma resistência, um contrapoder, uma oposição do próprio corpo à penetração da palavra que quer extrair "verdades" do mais íntimo de cada indivíduo.

Que importância tem a sexualidade nesse contexto? Obviamente não há como pensar a sexualidade sem considerar a medicina. O controle dos corpos que a igreja havia assegurado passava por essa carne obrigada a confessar o que nela havia de mais secreto. Mas o que o saber laico da medicina vai progressivamente confiscando para si é essa mesma carne obrigada a se pôr em discurso, obrigada a falar do que só ela conhece, de seus segredos íntimos, de seu desejo. A preparação por parte da igreja disso que mais tarde será objeto da medicina foi justamente essa carne de que se exige que se diga por completo para um sacerdote que lhe dirigirá a consciência na direção correta. Em outros termos, foi a pastoral cristã com todas as suas injunções de fala e escuta que delimitou o campo da sexualidade, exatamente o campo que se tornará objeto de uma medicina que não irá se satisfazer com uma atuação local de cura mas que responderá a problemas globais de ordem de controle higiênico.

Herdeira direta da igreja, a medicina penetrará cada vez mais de forma minuciosa e generalizada no corpo social, será cada vez mais presente nesta nova sociedade de massa em vias de se firmar. Que esta nova sociedade seja produtiva, consumista e liberal, mas com a condição de que seja também saudável. Mudança de poder, transformação da moral. Para o controle das múltiplas formas de gozo, a noção de pecado servia de justificativa à moral cristã. Não é o pecado o nome de toda infração às leis divinas? Com a laicização do controle que a medicina encarna, a nova moral laica terá por fim a limpeza, a higiene, a saúde. Infringir, agora, não mais diz respeito a atitudes que ferem a deus, mas a atitudes que ferem a sociedade. Saúde, limpeza e higiene são nomes desta nova moral que não tem mais o divino como referência.