sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Fantasma de Plástico

Fixado à pose, imobilizado pela matéria dura, preso ao instante como fantasmas de fotografia, cativo de uma sensualidade a que serve como suporte, Manequim! Algo do desejo o sutil olhar de seus olhos ocos exprime.

Não estando à venda, o que de você resta quando te compram o que vende? Possui alguma nudez? Ou está vestido da rígida matéria lisa se é o ar de dentro, substância lacrada, escurecida pela noite do fechado?

Com a profundidade de sua superfície, na coincidência fantástica do plástico morto com o mais vivo que a sua forma traduz – aquém das estátuas mas além dos homens que replicam a si –, agita em quem te vê isso que não se sabe.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Artes descentradas

O TEATRO de Carmelo Bene funciona a partir de uma amputação. Na linha da análise de Deleuze, ao subtrair determinado personagem de uma peça nova luz é lançada sobre os outros. A ausência daquele a quem tudo converge faz aparecer o inesperado (todo um conjunto de virtualidades), e uma tal figura que emperrava o surgimento destes outros possíveis Deleuze o trata como "elemento de poder". Imaginem um Romeu e Julieta sem o personagem Romeu, ou um Hamlet sem o próprio Hamlet! Com uma neutralização deste ponto catalisador para/de onde todo o enredo se desenvolve, personagens paralelos, menores ou marginais terão suas singularidades libertas em cena. Prossegue então Deleuze com a consideração de que a alteração pela subtração de uma parte realizada pelo diretor italiano tem efeitos não só na peça em questão como também sobre a própria forma do teatro, este deixando de ser mera representação. É com este gesto que a estória se esvai, assim como a estrutura que conectava as partes entre si e ao todo (um todo formado pela própria estrutura). Desaparecimento do caráter orgânico da peça, de qualquer consideração sua enquanto uma totalidade. Enfim, a condição não representativa deste novo teatro é justamente o que permite chamá-lo de moderno.

Há relações da música com isso que foi dito acerca do teatro. Se Deleuze nos fornece essas indicações, o que dizer da música? Isto é, na música o que permite a sua passagem para o moderno? Ocorre nela, como no teatro, alguma amputação que a liberte da representação, da condição representativa? A resposta a essa pergunta passa pelo tonalismo.

Como período que se segue ao modalismo, o tonalismo consiste na instauração de um eixo central em música. É em torno desse centro que gravitam as outras notas musicais, ora se afastando ora se aproximando rumo a uma resolução final. O centro é estabelecido pelo privilégio de uma nota – aquela que funcionará como o seu tom – que subordinará a si todas as outras. A escuta tonal percebe tensão entre aquelas "opostas" (três tons distantes, intervalo conhecido como trítono), que, quando tocadas, simultânea ou sucessivamente, parecem clamar por um alívio. Enquanto uma das notas sobe meio-tom, a outra desce e ambas se integram às vozes do acorde do primeiro grau (só falaremos aqui de um tipo de resolução. Por exemplo, o intervalo entre as notas e Si (ambas formam um trítono) soa dissonante para o ouvido impregnado de tonalidade, o que leva tais notas a se repelirem, como que obedecendo a uma força repulsiva: enquanto desce meio-tom, Si sobe. No lugar de tem-se agora o Mi e no de Si tem-se o , resolvendo deste modo num intervalo consonante o que era (escutado como) conflito: de e Si, respectivamente a sétima menor e a terça maior do acorde dominante de Sol, para Mi e , respectivamente a terça maior e a fundamental do acorde de . O tonalismo é justamente a exploração estética dessas forças harmônicas (repulsão/atração) que atuam sobre as notas pressionando-as.

Da dinâmica do aumento/diminuição de tensão através do afastamento/aproximação de certas notas resulta uma narrativa. A música por meio desse jogo parece contar alguma coisa. No lugar de uma fruição pura, ouve-se uma história. Mas o que essa história diz? A despeito da imensa variedade de temas, o que a forma narrativa em geral encena, diretamente ou por desvios provisórios, é a resolução de um impasse fundamental ao final de seu percurso, é a performance de um (re)encontro com a Coisa cuja falta mesma fez deflagrar o movimento que permitiu a obra em questão existir. A forma narrativa é essencialmente uma busca ao mesmo tempo que uma promessa; o repouso final conclusivo, a sua realização máxima, é a imagem de um encontro mas também o momento imediatamente anterior ao seu desaparecimento absoluto. Em suma, suspensão de um conflito que se encontra para além de qualquer causa particular, fantasmático (re)encontro com o que não está em lugar nenhum pelo motivo de que não existe. Eis o caráter ideológico de toda narratividade das artes representativas. Em música, esse absoluto que poria fim ao mal-estar da desde sempre frustrada e eternamente renovada busca é sugerido pela forma mesma de um centro tonal.

No sistema modal, bastava que uma melodia se desenrolasse no espaço de uma determinada divisão entre oitavas. Sobre as notas não havia pressão de nenhuma natureza que as encaminhasse para uma direção (pre)determinada. É no tonalismo que isso coisa acontece e o que o caracteriza. Mesmo em casos de modulação, o que ocorre é o deslocamento do centro, mas de forma alguma a sua dissolução. Fazendo um paralelo com a análise de Deleuze sobre o teatro de Carmelo Bene, com relação à música, não seria a ideia de um centro, própria do sistema tonal, aquilo mesmo que se deveria suprimir? Há, parece, uma equivalência entre protagonismo, no teatro, e centro tonal em música. Ambos são "elementos de poder", isto é, a instância que amarra não apenas a si mas sobretudo entre si as partes que constituem uma obra cujas identidades passam por esses focos privilegiados que determinam as funções que cumprem. Insistência do poder Régio? Encarnação do fantasma do soberano? Estrutura de um poder que ainda reverbera por não se saber já findado?

Para a plena realização do caráter moderno em música é necessário que ela dê um passo tornando-se ela própria descentrada, que cada um de seus pontos periféricos possua a importância que só possuía o centro. Inversamente, tornar aquele que ocupa o lugar central "desimportante" como aqueles das periferias. Eis a estratégia que permite desfazer o lugar de centralidade que conferia algum privilégio a quem o ocupava. A escuta que clama pelo centro, sedenta por sentido, dificilmente experimentará na nova música outra coisa que o caos. A impressão primeira que se tem com essa nova música muitas vezes é a de uma desorganização generalizada, seus tortuosos e ásperos caminhos melódicos lembrando um desenho desorientado ou de difícil traço. Soa brutal essa música a estes ouvidos impregnados de hábitos auditivos.

Essa música quase inconcebível faz aflorar uma verdade outra. Sendo a esquematização de um mundo sem centro, de um mundo sem finalidades (o que é a finalidade senão um centro no eixo do tempo?), ela anuncia não um outro mundo, mas diz acerca deste mesmo (aquém do qual ainda se encontra o imaginário tonal) em que o homem já não é o coroamento da criação mas um bicho que fala e trabalha; onde a terra não é o centro de um universo mas um planeta cujo movimento de translação não descreve um círculo (figura geométrica com um centro) e sim uma elipse (figura de centro indeterminado); onde o sol é uma entre muitas estrelas cujas proporções acentuam e amplificam a indiferença e o silêncio de todas as coisas; onde de Deus só resta o sopro que faz ouvir a palavra "deus". Seria a superação do tonalismo o capítulo seguinte a todas essas etapas? Se ouvimos do ditado que "o diabo mora nos detalhes", acrescentamos que "Deus habita nas sombras". O sistema tonal e toda forma de protagonismo talvez ainda sejam sombras desse Deus.

Pós-tonalismo é o seu nome. O termo atonalismo não parece apropriado em razão de ter o prefixo de negação "a", como se a música que prescindisse de tom fosse desprovida de um centro por alguma incapacidade, quando o que ocorre é um ultrapassamento. É no interior de um tal quadro que se pode delinear alguns caminhos já abertos: a dodecafonia e o serialismo são alguns caminhos possíveis da nova música. Mas para além desses e de todo campo ainda virgem frente ao esgotamento tonal, tratou-se aqui da conquista de uma nova escuta, da construção de um novo ouvido, quem sabe o princípio de uma trajetória para o homem ser ele próprio de outra espécie, aquela ainda por vir pelo próprio exercício de sua liberdade.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Orelha

Curvas sinuosas,
complexos caminhos
ao fim dos quais o
labirinto. Percorre
tal trajeto um não-
sei-o-que a um
instante de se
tornar som.

Com o acréscimo de
um ponto de metal
na ponta, um brilho
cobre de erótico
a fina pele de onde
brota, como grama,
leve penugem.

Perfeita obra de
engenharia revelam
o arredondado de
um dos lados e o plano
do verso. Projeto de
asa, esta aba de
cartilagem por pouco
não fez das cabeças
entes alados.

O pano

A noite sopra éter no pano
pendurado lá fora mergulhado
em silêncio de surdo. Bandeira
de nada, manto de ninguém,
é mortalha oca mas não vazia.
Nos corredores de suas dobras
percorrem as esperanças
sobradas enquanto
sepultadas com ele no
firmamento, aquele trapo
puído, caído e já sem balanço,
pingado, esquecido sabe-se
lá de que imemoráveis festins.

Peso

Como pesam os meus dedos!
Seus esforços de arrancar do
nylon o imaterial são antes
os de vencer a própria inércia.
Mas como eles pesam!
A rústica madeira curvou-se
à exigência da forma e
todas as sonatas são agora
possíveis. Só faltam os meus
dedos, que pesam, que doem,
que mais se arrastam do que
deslizam no instrumento
pelo atrito da áspera pele
da ponta das falanges
dos dedos da mão
do braço ligado a
um grosso tronco
apoiado em pés que
tocam o planeta grave.
Estes meus dedos, como vencê-los
na desproporcional luta por
fazer sair do pesado corpo bronco
o suave que afina o leve espírito?

Poema do aeroporto

Entre terminais não durmo
a quantidade de horas. Ainda
que tudo se mova, nada se
passa. O súbito desarranjo
no tempo fez do que havia
mero acúmulo. Com a duração
descompassada, o montante
despropositado e mudo atrás
do que nada há a si se mostrava:
espesso e sem transparência, do
que bloqueia a minha visão senão
de coisa nenhuma? Sem medida
que diferencie os minutos das horas,
num eterno "ainda não" mordo
os lábios para não desaparecer.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Verdade concreta e monstruosidades

1.1 - Uma leitura concreta

A LEITURA que Slavoj Žižek faz dos autores a partir dos quais ele estrutura o seu pensamento obedece a algum procedimento específico? Quando lemos seus livros percebemos sem grande dificuldade que ele interpreta esses autores a partir de parâmetros diferentes daqueles geralmente seguidos por comentadores e especialistas, pelo motivo de que a sua abordagem é explicitamente "parcial". Ao fazer referência aos pensadores da tradição, Žižek o faz de maneira diferente de toda leitura que não visa extrapolar o que realmente disseram. O que salta aos olhos é justamente o caráter interessado de suas leituras. Mas de que maneira isso aparece? Ora, quando Žižek interpreta um autor a partir de um outro autor. A leitura que faz Hegel, por exemplo, Žižek intencionalmente o lê a partir do referencial lacaniano, referencial esse que constitui o seu lugar de leitura, porque, segundo ele, é "o próprio Lacan [que] nos permite aproximar da matriz elementar que resume a totalidade do movimento da dialética hegeliana" (ŽIŽEK, Slavoj. Interrogating the real. London: Continuum, 2005. p. 27).

Poder-se-á objetar que uma tal leitura produz uma "deturpação" no pensamento "original" de Hegel, que procedendo dessa maneira o "sentido" e a "verdade" do texto estariam comprometidos com esse "lugar" a partir de onde a interpretação é feita. Mas, para Žižek, o "sentido" e a "verdade" de um texto estão sujeitos aos mais diversos posicionamentos, que o que se busca quando se lê uma obra não tem como não estar à mercê desses múltiplos lugares de onde a leitura parte e que a verdade em si da obra não deve mais ser o fim buscado. Eis o que nos parece importante de se compreender: o sentido e a verdade, pelo fato de virem "só depois" — para usar uma expressão psicanalítica — estão necessariamente marcados por uma contingência irredutível que os mais variados posicionamentos implicam:

em vez da progressão linear, imanente e necessária, segundo a qual a significação se desenrola a partir de um núcleo inicial, temos um processo radicalmente contingente de produção retroativa de significação. (ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 101.)

Isso nos leva a considerar que Žižek não está interessado no sentido em si de uma obra, pelo motivo de que, para ele, não existe algo como tal. Como chegar ao em si do pensamento de um autor senão pela exclusão da posição do sujeito que interpreta? É justamente uma tal exclusão, a do sujeito enunciativo, que Žižek considera não ser possível, mesmo que o reconhecimento dessa impossibilidade signifique em aceitar como inevitável o fato de que toda interpretação esteja comprometida com o lugar subjetivo de onde ela é feita, em reconhecer o princípio de que a contingência do posicionamento do sujeito afeta o conteúdo mesmo do que é interpretado.

Mas Žižek vai ainda mais longe. Ele não só afirma a impossibilidade de uma interpretação que exclua todo posicionamento subjetivo como afirma que a verdade universal de um texto pode vir à tona a partir da plena aceitação da parcialidade do sujeito que interpreta, em outros termos, da inclusão desse lugar do sujeito intérprete no conteúdo interpretado. Portanto, ao contrário do que o senso comum esperara de um comentador, para Žižek a universalidade do sentido de uma obra não exclui a dimensão da contingência que a posição do sujeito que interpreta implica: a universalidade, para ser verdadeiramente universal, deve incluir na interpretação o lugar do sujeito.

É isso o que Žižek chama de Universalidade Concreta, tema recorrente em sua obra tomado de Hegel. Trata-se da universalidade verdadeiramente materialista em oposição à Universalidade Abstrata. Enquanto a forma lógica que subjaz a esta última consiste no trabalho de sustentação à custa da exclusão de um elemento particular, justamente aquele não integrado, por não admitir nenhuma exceção que a contradiga, a "universalidade concreta hegeliana (...) divide o universal do interior, reduzindo-o a um de seus elementos particulares, a um elemento da sua própria espécie." (ŽIŽEK, Slavoj. A marioneta e o anão. O cristianismo entre perversão e subversão. Trad. Carlos C. M. de Oliveira. Lisboa: Relógio D'água, 2006. p. 107). Isso com o que a Universalidade Concreta rompe é a "distância de um contendor abstrato" para entrar "no seu próprio quadro" (Idem). Não é isso o que ocorre na interpretação que visa incluir nela mesma o lugar do sujeito que interpreta, que reconhece como necessária para a universalidade do sentido a inclusão da posição do intérprete naquilo mesmo que é interpretado? Ler uma obra buscando o sentido puro, em si, independente do leitor, o elemento excluído nesse caso não seria o próprio lugar de onde a leitura é efetuada? O que aqui chamamos de leitura concreta é aquela cujo movimento deve incluir o efeito do lugar do leitor na universalidade do próprio sentido. A posição de Žižek em suas obras é constituída pelos autores com os quais ele realiza as leituras dos filmes, dos grandes clássicos da literatura, dos filósofos etc. Sua parcialidade e interesses são tanto explícitos e efetivos na determinação do conteúdo interpretado quanto constitutivos de seu próprio pensamento. Em Menos que nada, lemos que

toda interpretação é parcial, "enraizada" na posição subjetiva e fundamentalmente contingente do sujeito; contudo, longe de impedir o acesso à verdade universal do texto interpretado, a plena aceitação dessa contingência e da necessidade de lidar com ela é a única maneira de o intérprete ter acesso à universalidade do conteúdo do texto. A posição subjetiva e contingente do intérprete produz o ímpeto, a ânsia ou o anseio que sustenta uma interpretação autêntica. Se quisermos chegar à universalidade do texto interpretado diretamente, como ele é "em si", contornando, apagando ou abstraindo a posição engajada do intérprete, então temos de admitir a derrota e aceitar o relativismo historicista, ou elevar a um Em-si universal e determinado o que é de fato uma leitura particular e arbitrária do texto. Em outras palavras, a universalidade que alcançamos dessa maneira é a universalidade abstrata, uma universalidade que, em vez de abranger, exclui o contingente particular. A verdadeira "universalidade concreta" de um texto histórico notável como Antígona (ou a Bíblia, ou uma peça de Shakespeare) reside na própria totalidade de suas leituras determinadas. (ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 207.)

Em oposição à noção de Universalidade Abstrata, a Universalidade Concreta constitui o fundamento do procedimento de leitura de Slavoj Žižek, de sua interpretação interessada. Sendo a lógica da universalidade concreta aquela que nos permite escapar da ideia de um contendor abstrato externo aos elementos que contém, ela é justamente o que viabiliza pensar uma outra forma de verdade, diferente daquela que se sustenta na suposição de apreensão de um em si do texto, de seu significado "real". Trata-se, aqui, de uma verdade que considera a "posição subjetiva de seu leitor-intérprete como ponto particular e contingente a partir do qual a universalidade é percebida." (Idem, p. 208) É somente por esta via que evitamos o risco de ocupar, enquanto leitores-intérpretes, o impossível lugar externo ao objeto, a posição do de fora, meta-situada. Isso se resume na afirmação de que não existe metalinguagem (Cf. Eles não sabem o que fazem, p.181, e O mais sublime dos histéricos, p. 203). Com ela Žižek faz referência tanto à inexistência desse lugar neutro de onde se julgaria objetivamente quanto à opacidade da linguagem. Em resumo, o procedimento de leitura que inclui o lugar de onde se lê naquilo que é lido é justamente aquele que reconhece a opacidade da linguagem e a impossibilidade fundamental de uma posição de exterioridade dos sujeitos em relação aos objetos/textos interpretados. A confirmação disso pode ser encontrada na seguinte afirmação:

O fato de a linguagem nunca ser um discurso transparente/neutro sobre os objetos, um discurso que se enuncie de uma distância "objetiva", isto é, o fato de ela sempre trazer uma posição subjetiva da enunciação, significa que, através dos objetos "designados", ela sempre se refere a um "excesso", a um objeto paradoxal." (ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. p. 182.)

O termo "excesso" da citação aponta para a impossibilidade fundamental de ocupar uma posição em que alguma objetividade seja possível, pois se está sempre aquém ou além do "ponto exato". A questão que nos interessa é que mesmo sem a posição de exterioridade em relação ao objeto, mesmo sem uma linguagem transparente por meio da qual a verdade em si do texto se revele em sua plenitude, ainda assim é possível algo como a verdade. E mais: a verdade de um texto só é possível se o sujeito abandonar a pretensão de uma posição supostamente neutra e se incluir naquilo que interpreta, visto que é somente deste modo que ele "se prende no movimento de seu conteúdo [do texto]". (ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético. p. 208.) Ou seja, para que se chegue à verdade deve-se passar por esse excesso. Mas que verdade é essa?

1.2 A imaculada concepção

Compreende-se a articulação entre as noções de verdade e excesso na obra de Slavoj Žižek quando se entende que o objetivo de uma leitura concreta — ler um autor a partir de determinados referenciais tendo em vista objetivos específicos — é a criação de algo novo (mesmo que esse novo seja monstruoso).

Esse procedimento de leitura não parece ser exclusivamente seu. O esloveno reconhece que não está sozinho nesse modo de leitura a partir de referencias exteriores. Não seria o espinosismo de Deleuze o produto de uma interpretação retroativa? Segundo Žižek,

Mesmo com relação a Deleuze, podemos afirmar que seu Espinosa é um Espinosa pós-kantiano, um Espinosa imperceptivelmente relido por intermédio de um enquadramento pós-kantiano. (ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 33 e 34.)

Em Órgãos sem corpos Žižek escreve acerca do modo como Deleuze certos autores. Ele diz que a leitura feita por Deleuze visa “descobrir em suas [dos autores] próprias práticas teóricas procedimentos (...) que ofereçam uma forma de minar suas posições “oficiais”. (ŽIŽEK, Slavoj. Órgãos sem corpos. Trad. Manuella Assad Gómez. Rio de Janeiro: Cia do Freud, 2011. p. 75). Em outros termos, o que Deleuze faz, como ele próprio diz, é pegar um filósofo por trás: “a história da filosofia [é] como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção”. (DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 14.) O que resulta dessa sodomia filosófica? “Sua enrabada produz verdadeiros monstros”. ( ŽIŽEK, Slavoj. Órgãos sem corpos. p. 77.) Devemos nos atentar aqui ao argumento de Žižek, pois ele está fazendo um paralelo entre esse procedimento de Deleuze de leitura com o seu próprio. Ele ainda nos lembra que quem antes do próprio Deleuze procedeu desta maneira foi Jacques Lacan.

Deleuze é aqui profundamente lacaniano: Lacan não faz a mesma coisa em sua leitura de Kant “com Sade”? Jacques-Alain Miller certa vez caracterizou essa leitura com as mesmas palavras de Deleuze. O objetivo de Lacan é “pegar Kant por trás”, produzir o monstro sadista como um descendente do próprio Kant. (Idem, p. 77 e 78.)

Parece que para Lacan, Deleuze e Žižek há uma infertilidade nas interpretações "realistas": elas estariam para as interpretações que fazem como as "corretas" penetrações vaginais estão para as penetrações anais.

A leitura deleuziana não acontece no nível da imbricação atual de causas e efeitos; ela está para as interpretações "realistas" assim como a penetração anal está para a "correta" penetração vaginal. Essa é a "verdade" do discurso livre indireto de Deleuze: um procedimento de sodomia filosófica. (Idem, p. 78.)

Mas qual é a questão fundamental dessa exposição que Žižek faz de Gilles Deleuze? Ele irá tentar mostrar que Deleuze foi incapaz de pegar Hegel por trás e produzir-lhe filhos. E por quê? Será em razão de algum interdito velado, de alguma espécie de "proibição do incesto" tal como ocorre entre aqueles que se encontram excessivamente próximos embora não o saibam? Não cabe, aqui, um aprofundamento nas possíveis conexões entre Deleuze e Hegel, mas em Órgãos sem Corpos Žižek levanta a possibilidade de um filho monstruoso a ser concebido se Hegel pegasse Deleuze por trás. "Como seria a descendência dessa imaculada concepção?" (Idem, p. 78.) É deste modo que devemos entender a relação entre verdade e excesso, podendo o núcleo de um pensamento ser identificado com esse a mais monstruoso, como por exemplo o Kant com Sade de Lacan. A noção lacaniana de só depois (après coup), constantemente retomada por Žižek, pode ser a versão psicanalítica dessa lógica da imaculada concepção que caracteriza a leitura deleuziana. Não será uma aproximação entre esses dois autores via o procedimento de leitura que ambos fazem aquilo que nos permite identificar verdade e monstruosidade?