sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Orelha

Curvas sinuosas,
complexos caminhos
ao fim dos quais o
labirinto. Percorre
tal trajeto um não-
sei-o-que a um
instante de se
tornar som.

Com o acréscimo de
um ponto de metal
na ponta, um brilho
cobre de erótico
a fina pele de onde
brota, como grama,
leve penugem.

Perfeita obra de
engenharia revelam
o arredondado de
um dos lados e o plano
do verso. Projeto de
asa, esta aba de
cartilagem por pouco
não fez das cabeças
entes alados.

O pano

A noite sopra éter no pano
pendurado lá fora mergulhado
em silêncio de surdo. Bandeira
de nada, manto de ninguém,
é mortalha oca mas não vazia.
Nos corredores de suas dobras
percorrem as esperanças
sobradas enquanto
sepultadas com ele no
firmamento, aquele trapo
puído, caído e já sem balanço,
pingado, esquecido sabe-se
lá de que imemoráveis festins.

Peso

Como pesam os meus dedos!
Seus esforços de arrancar do
nylon o imaterial são antes
os de vencer a própria inércia.
Mas como eles pesam!
A rústica madeira curvou-se
à exigência da forma e
todas as sonatas são agora
possíveis. Só faltam os meus
dedos, que pesam, que doem,
que mais se arrastam do que
deslizam no instrumento
pelo atrito da áspera pele
da ponta das falanges
dos dedos da mão
do braço ligado a
um grosso tronco
apoiado em pés que
tocam o planeta grave.
Estes meus dedos, como vencê-los
na desproporcional luta por
fazer sair do pesado corpo bronco
o suave que afina o leve espírito?

Poema do aeroporto

Entre terminais não durmo
a quantidade de horas. Ainda
que tudo se mova, nada se
passa. O súbito desarranjo
no tempo fez do que havia
mero acúmulo. Com a duração
descompassada, o montante
despropositado e mudo atrás
do que nada há a si se mostrava:
espesso e sem transparência, do
que bloqueia a minha visão senão
de coisa nenhuma? Sem medida
que diferencie os minutos das horas,
num eterno "ainda não" mordo
os lábios para não desaparecer.