quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Trump e o urinol de Duchamp

O que Donald Trump e a arte ready-made de Marcel Duchamp têm em comum? Deste último, lembremos de A fonte (1917): um mictório de porcelana branco exposto no museu. O "lugar" que esse mictório ocupa, aberto pelo espaço de um museu, confere a ele o mesmo estatus das "grandes obras". Mas um mictório? Nada parece tão distante da fruição artística do que aquilo para que um mictório serve. E Trump, não seria ele também o ocupante estranho de um "lugar" que se supunha de elevado valor (o cargo de presidente dos EUA)? Sua biografia, seus rompantes vulgares, suas expressões, bem como o mictório de Duchamp (o uso que se faz dele, sua trivialidade e aparência que em nada aponta para o que se entende por beleza, etc.), tudo isso evidencia um desencontro fundamental: aquele entre o "objeto" e o "lugar" que esse mesmo objeto ocupa. Esse desencontro, anunciado por Duchamp e confirmado por Donald Trump, talvez constitua uma importante chave de leitura para uma série de eventos nos mais variados campos. É diante de um mictório no museu que surgem perguntas como: "isso é mesmo arte?", ou "afinal, o que é arte?". É diante de um Trump presidente que nos perguntamos: "o que é a presidência de um país, sobretudo a dos EUA?" Não se trata, aqui, de um desencontro qualquer, mas daquele que faz com que uma coisa não seja plenamente ela mesma: a figura de Trump não cola ao cargo que este ocupa, e estar diante dele é não saber ao certo do que se está diante. Talvez por isso que Donald Trump como presidente esteja mais para uma gafe do que para uma piada. Mas também não se trata de uma gafe simplesmente, mas de um desacordo entre o "objeto" e o "lugar". O feito de Duchamp – tão mais subversivo quanto eficaz – além de ter posto a nu pela primeira vez esse desacordo, mostrou que o desmonte de qualquer formação (política, estética) só pode se dar a partir de dentro. Pouco ou nada adianta afirmações e atos contra o "sistema" que partem "de fora" daquilo que pretendem destruir. A verdadeira subversão ou parte "de dentro" ou ela não existe por sua ineficácia. A contradição inerente deve ser exposta e levada ao seu limite até a implosão mais completa da formação que a traz em seu cerne. É isso o que Donald Trump significa no campo da política, da mesma maneira que o mictório de Marcel Duchamp no campo das artes: ambos levam ao limite o desacordo entre o "objeto" e o seu "lugar" na estrutura. Eis o que se deve entender por contradição, aquela mesma a que já se referiram como o "motor da história" por revelar o caráter obsoleto de uma determinada ordem que distribui os lugares (o de uma presidência, o das artes).