sexta-feira, 27 de julho de 2018

Circular

Louva o centro e o estável
o que se movimenta
num percurso orientado
pelo fim a que se encaminha,
pela origem de que não se desprende.
Com tal modelo de movimento,
na trajetória percorrida
o “herói” da aventura rasa
viaja a falsa viagem e colhe
pouco do que se lhe oferece:
sempre à distância e
no conforto das garantias,
é incapaz de enfrentar
os riscos dos rios de risos.
Para bem caber dentro de si,
jamais se desamarra da
sua imagem-cápsula e
atravessa o espelho.
Se lançado no continente
das incertezas busca ele
o firme das pedras nas
coisas que consome,
como na música que ouve,
que o leva mas que não
deixa de trazê-lo de volta;
não sendo ela “o barco bêbado”,
não faz mais que “dar um giro”
em torno de um eixo
“imóvel”, o centro tonal.
Deus é a nostálgia do fixo.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Alguém disse "riqueza da vida interior"?

Há algo de falso na “vida interior”. Espécie de abrigo para certos "inconvenientes" da vida social a que nos submetemos, a vida interior, com toda a sua "riqueza", é como um biombo que nos afasta da realidade daquilo que somos, sobretudo nas considerações íntimas, nas variadas maneiras de se referir a si, pois se fundam sobre uma cegueira quanto a verdade daquilo que se é. Narciso é o maior dos iludidos. Por isso é preciso escapar do perigoso vício da profundidade e reconhecer que somos aquilo mesmo que aparentamos ser, que as nossas aparências revelam de nós mais do que gostaríamos de admitir: a nossa transparência nos denuncia. Portanto, não é "do lado de dentro" mas "do lado de fora" que está a verdade. O que “lá dentro” de nós nos contamos que somos é apenas o que pensamos ser. Há verdade nas aparências e não na interioridade dos nossos discursos mais íntimos, nosso "monólogo interior". O efeito dessa duplicação entre o que interiormente se pensa ser e a forma pela qual se dá o reconhecimento por parte do outro não passa de artimanha de afastamento da verdade de um desejo que se realiza no dia a dia. Os doces recantos da vida interior, os projetos grandiosos, os sonhos mais íntimos, tudo isso não é outra coisa que o esforço de nos refugiarmos de nossa própria pequenez. É vã toda tentativa de se decifrar com palavras, narrar-se “internamente”, contar para si acerca de si. Tagarela e barulhenta, a consciência é uma das vozes da loucura no silêncio da cabeça de cada um, voz regida sabe-se lá por que forças e que jamais irá se calar. A esse respeito, Žižek diz que

Nossa experiência mais elementar de subjetividade é a "riqueza da minha vida interior": é isso que "realmente sou", em contraste com as determinações e responsabilidades simbólicas que assumo na vida pública (pai, professor etc.). Aqui, a primeira lição da psicanálise é que essa "riqueza da vida interior" é fundamentalmente falsa: é um biombo, uma distância falsa, cuja função, por assim dizer, é salvar as aparências, tornar palpável (acessível a meu narcisismo imaginário) minha verdadeira identidade simbólico-social. Assim, um dos modos de praticar a crítica à ideologia é inventar estratégias para desmascarar a hipocrisia da "vida interior" e suas emoções "sinceras". A experiência que temos de nossa vida por dentro, a história sobre nós que contamos a nós mesmos para explicar o que fazemos é mentira; a verdade está, antes de tudo, do lado de fora, naquilo que fazemos. (...) As "histórias sobre nós que contamos a nós mesmos" servem para confundir a verdadeira dimensão ética de nossos atos. (Slavoj Žižek, Primeiro como tragédia, depois como farsa, P. 44)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

A linguagem, a verdade, a consciência e o medo

É suposto que a linguagem seja o meio de conhecimento do que se considera poder conhecer. Para isso, ao tornar-se conceito teve a linguagem que se esquecer de sua origem metafórica. Conhecer é um processo, como disse Nietzsche, de “igualação do não igual”, de redução do múltiplo, de abandono e desconsideração das diferenças que fazem do que é individual o indivíduo que se é. E qual é o custo disto? Um empobrecimento da experiência. Sendo metafórica a verdadeira natureza da linguagem, originalmente ela não empobrecia o que quer que tocasse por preservar o valor de individualidade do que é singular. Ou, melhor dizendo, talvez ela não tocasse em nada além de si própria. Mas eis o grande engodo em que se enredou: transformada em conceito, quer sair de si para chegar às coisas e dizê-las como elas são. É deste esquecimento de sua origem que resulta o sentimento da verdade, processo no qual quem perde é a vida.

Frio e abstrato, o conceito faz a mediação da relação do homem com o mundo, padronizando, a partir de uma espécie de regra do bom senso, as impressões que este homem tem. Soará delirante toda impressão que não possa ser universalisada, isto é, que não possa ser reconhecida, integrada a um quadro geral e comum assegurado pelos “homens”. Não é dificil enxergar que por trás dessa vontade de conhecimento há uma outra vontade, a de estabelecimento de vínculos para fazer do outro o seu próximo, a necessidade de uma vida em rebanho para que desapareça o perigo de morte que um homem representa para outro homem. Dito isto, quem poderia ser o mentiroso se não aquele que rompe com o poder que separa o falso do verdadeiro? Não existe figura de maior risco do que este que não consente com a verdade. Nocivo àqueles que aceitaram a legislação da linguagem, o mentiroso é quem engendra prejuízos sem medida à vida em rebanho.

A linguagem enquanto conceito é comunicação. Comunicar é a ação de "tornar comum". E toda comunicação, em última instância, é mando de um e obediência de outro. É nestes homens que nasce a consciência, sobretudo nos que obedecem. Estar dotado de consciência é estar alienado ao outro, ser regido por seus comandos de ordem. Da necessidade do vínculo nasce a consciência. O homem consciente precisa sentir-se protegido. Sob a consciência, então, existe o medo. Rasa, ela só é capaz de reter para si quase nada do que se passa, ela é um “dar-se conta” disso ou daquilo, mas sempre de uma mínima parte e a mais superficial do que se passa nesta ovelha branca. A consciência não é o mesmo que pensar e é como uma doença.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A mentira como a verdade do amor

O AMOR, à luz da verdade de seus efeitos, é na sua essência nada mais que decepção. O homem romântico, vítima de uma triste narrativa, padece de um drama que é o da impossessão. Mas esse sujeto que se deixa conduzir pela melancolia, o que é que ele não possui? Ora, não possui um determinado mundo para cujo funcionamento ele é absolutamente dispensável. Trata-se do mundo da sua amada. Mas pior do que não possuir é não pertencer. Por uma necessidade estrutural, este avaro de uma ilusão se encontra excluído desse mundo desde sempre por sua condição mesma de amante. E disso ele sabe muito bem, pois o ciúme, sombra escura do amor que sente, sintoma do seu sentimento, é o sofrimento de não participação daquilo que mais anseia, que é a vida daquela que tanto ama. Aprofundar-se em certas pesquisas, do tipo: “quem é ela quando não estou por perto?”, é correr o risco de ter desmentida a representação pouco fundada que tem dessa mulher, posto que a imagem que dela ele construiu se valeu de signos já comprometidos. Ele é como o crente ou o filósofo dogmático que inventa mil peripécias e métodos querendo ter acesso ao que acontece lá onde o seu olhar não entra. Os carinhos oferecidos pelo seu amor, as palavras e juras proferidas, tudo isso não é outra coisa que o encobrimento da difícil verdade: ambos os mundos nunca serão um único e mesmo mundo; trágicos, estes dois personagens nunca serão um só, nunca terão uma mesma alma, uma mesma carne.

"Os signos amorosos (...) são signos mentirosos que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofundamento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está contido no lema 'amar sem ser amado'." (Proust e os Signos – Gilles Deleuze, p.9)