Quando é que a sexualidade se torna objeto de um saber médico e de intervenção por parte de determinadas instituições? Em outros termos, quando é que sexualidade entra em cena tornando-se uma preocupação por parte do poder? A resposta a esta pergunta é complexa e não pode ser dada de uma só maneira. É certo que o aparecimento do fenômeno da população demandou novas formas de controle, sendo a sexualidade justamente o ponto preciso onde o poder passou a intervir a fim de gerir esse novo fenômeno. Aqui nos concentraremos especificamente na aula do dia 26 de fevereiro de 1975, oitava aula do curso Os anormais pela seguinte razão: por um lado, o problema da população ainda não estava plenamente formulado, por outro, exatamente neste curso a sexualidade já é vislumbrada como alguma coisa que está se tornando um problema político. Por este motivo, o ano de 1975 parece ser um período intermediário: o problema da sexualidade já começa a ser delineado embora sem antes ainda a questão da população e do poder que dela pretende dar conta estejam colocados. Talvez um dos grandes méritos deste curso seja o de servir àqueles que estudam a obra de Foucault perceberem uma tal guinada a partir da colocação destes problemas inéditos. Foucault toma uma direção específica – e será precisamente isto o que se pretende apresentar aqui – que se consolidou nos anos seguintes da qual resultará na hipótese da biopolítica.
Do que exatamente trata essa aula do dia 26 de fevereiro de 1975? Nela uma importante passagem histórica será abordada, a do mecanismo do poder eclesiástico para o médico. Para mostrar tal passagem Foucault se utiliza do conhecido caso de possessão demoníaca de freiras, em 1632, na cidade francesa de Loudun. Portanto, é na primeira metade do século XVII que Foucault percebe uma tensão entre duas forças. Mas ao que visavam tais forças, ou melhor, o que eram tais forças? São elas forças interpretativas. Isso nos leva a considerar que a força do poder, antes de ser física, são forças de interpretação, isto é, são forças de produção de sentido. O exemplo dado por Foucault diz respeito às freiras do convento das ursulinas na cidade de Loudun que começaram a apresentar determinados sintomas, como contorção, gritos e gemidos, além de blasfemarem e emitirem vozes distorcias. O que seria isto? A igreja de imediato tratou do caso como o de possessão, afirmando que o que estava nas freiras, o responsável por aquilo nelas, era o demônio. Coincide com tal período o aumento da importância da medicina, que foi progressivamente dominando o território interpretativo, motivo pelo qual não pôde se calar diante deste ocorrido em Loudun. O que eram, para a medicina, as "manifestações demoníacas"? Chamou-as de convulsão. Têm-se, portanto, mais do que dois nomes (possessão/convulsão), duas interpretações, dois sentidos do fato.
Nomear algo é sempre já situar-se num determinado campo do poder. Mas Foucault, na tentativa de se referir a tal fato sem no entanto partir dos pressupostos definidos pelo poder, afirma que tanto possessão quanto convulsão foram esforços de determinar algo que por si mesmo já era da ordem da resistência. O que é isso que ocorria com as freiras por trás do que a igreja e a medicina diziam? É a manifestação de uma verdade na forma de resistência contra a exigência de que "tudo deve ser dito! ". Eis porque aqueles corpos, sem dúvida que à revelia da própria pessoa, gritavam, se debatiam e se contorciam, corpos dos quais era exigido que tudo dissessem. Mas à expansão da igreja houve já outras maneiras de resistência. No século anterior, é na figura da feiticeira que tal resistência ao poder eclesiástico pode ser encontrado. Quem eram as feiticeiras? As feiticeiras eram mulheres do interior onde a igreja não tinha ainda bastante penetração. A feiticeira, sendo uma figura do campo, é exterior à igreja, predominantemente urbana. A resistência que caracteriza a feiticeira provém portanto de fora da institucionalização da palavra de deus que vinha se alastrando. As feiticeiras não eram de fato adoradoras do demônio, mas mulheres que – pelo seu afastamento dos grandes centros urbanos, moradoras da mata e do interior do país, isto é, à margem das cidades onde a pastoral cristã era certa e incisiva – representavam pontos contra os quais cedo ou tarde a igreja teria que se chocar, e quando se chocou, recaiu sobre elas todo um imaginário construído a partir do anverso da ideia que a igreja fazia do divino. Estas são as feiticeiras, mulheres que encarnavam traços essencialmente do imaginário do cristianismo do século XVI. E as possessas? A análise destas deve ser feita tendo como pano de fundo esse caso das feiticeiras. As possessas eram, em primeiro lugar, uma resistência no interior mesmo da igreja. Não foram as freiras de um determinado convento que ficaram possuídas? Em segundo lugar, o convento em que essas freiras habitavam estava situado na cidade, isto é, localizado num centro urbano ao invés de em algum lugar longínquo. Se essas freiras dominadas pelo demônio ou que sofriam de convulsões foram exatamente aquelas que em todos os sentidos habitavam o interior da igreja, eram elas que mais se expunham à injunção do "confesse!" própria do "governo da carne" do poder eclesiástico. A possessão é, portanto, uma resistência, um contrapoder, uma oposição do próprio corpo à penetração da palavra que quer extrair "verdades" do mais íntimo de cada indivíduo.
Que importância tem a sexualidade nesse contexto? Obviamente não há como pensar a sexualidade sem considerar a medicina. O controle dos corpos que a igreja havia assegurado passava por essa carne obrigada a confessar o que nela havia de mais secreto. Mas o que o saber laico da medicina vai progressivamente confiscando para si é essa mesma carne obrigada a se pôr em discurso, obrigada a falar do que só ela conhece, de seus segredos íntimos, de seu desejo. A preparação por parte da igreja disso que mais tarde será objeto da medicina foi justamente essa carne de que se exige que se diga por completo para um sacerdote que lhe dirigirá a consciência na direção correta. Em outros termos, foi a pastoral cristã com todas as suas injunções de fala e escuta que delimitou o campo da sexualidade, exatamente o campo que se tornará objeto de uma medicina que não irá se satisfazer com uma atuação local de cura mas que responderá a problemas globais de ordem de controle higiênico.
Herdeira direta da igreja, a medicina penetrará cada vez mais de forma minuciosa e generalizada no corpo social, será cada vez mais presente nesta nova sociedade de massa em vias de se firmar. Que esta nova sociedade seja produtiva, consumista e liberal, mas com a condição de que seja também saudável. Mudança de poder, transformação da moral. Para o controle das múltiplas formas de gozo, a noção de pecado servia de justificativa à moral cristã. Não é o pecado o nome de toda infração às leis divinas? Com a laicização do controle que a medicina encarna, a nova moral laica terá por fim a limpeza, a higiene, a saúde. Infringir, agora, não mais diz respeito a atitudes que ferem a deus, mas a atitudes que ferem a sociedade. Saúde, limpeza e higiene são nomes desta nova moral que não tem mais o divino como referência.