quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Texto lido por Caetano Veloso no STF, no dia 04 de novembro de 2019.

“O governo dirá que não proíbe arte, que não está prendendo ou interrogando autores, que artistas são perfeitamente livres para expressar suas ideias, suas sexualidades e suas religiões, que não existe mais um departamento de censura, não existe mais o cargo de censor, que o Estado não pretende impedir a difusão de obra alguma. Ao contrário do passado, o Estado apenas se reserva o direito de não financiar artistas e temáticas que estejam em desacordo com o projeto que foi feito nas urnas pela maioria do povo. Ao contrário da censura, a suspensão do edital é democrática.
Pois é exatamente aí que vive a essência da censura, onde o cancelamento de um mero edital se iguala à censura mais escancarada e abre o precedente para que ela se institucionalize e que podemos não perceber a gravidade, o tamanho do risco, se cometermos o erro de encerrar o debate sobre a liberdade de expressão como um choque entre o Estado e os autores. E esse é um erro muito comum, porque em uma sociedade tão focada no indivíduo, no ego da autoria e na obsessão com o protagonismo do autor, é natural que a gente deposite o valor da liberdade de expressão no direito sagrado do indivíduo de dizer o que quiser, de artista ter o direito de veicular livremente suas ideias. Mas, como artista, eu digo que esse é um valor secundário, é o de menos no princípio da liberdade de expressão tão fundamental para a democracia. O artista, no fundo, é coadjuvante de uma história maior, pois o maior valor da liberdade de expressão é o público: é mais sobre o direito de escutar do que sobre o direito de dizer, é o direito do público, do espectador, ter acesso a ideias variadas, inclusive aquelas diferentes das que ele já conhece e aprova. E aí, na autonomia do público, no seu direito de ser exposto ao novo, ao desconhecido, que reside a importância cultural e democrática da liberdade de expressão.”