quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Hierarquia ontológica do campo sonoro

Contrariamente ao que se imagina, o silêncio não é anterior ao som e, menos ainda, ao ruído. Na hierarquia própria à realidade sonora, o ruído é anterior ao som e este, ao silêncio. Na ordem ontológica desse campo, o ruído é primeiro, é manifestação espontânea, ao passo que o som só pode vir depois por ser o ruído trabalhado. Por fim, o silêncio. Se a música é a maior de todas as artes, a conquista do silêncio é o maior de todos os feitos. Parafraseando o verso bíblico, “no princípio era o ruído”, e eis que (por alguma intervenção) se fez o som. Mas interessa mesmo é o passo seguinte: o silêncio. “O mundo é um mar de ruídos com pequenas ilhas de som”, dirá um poeta ainda por nascer. Quanto ao silêncio, este resulta de árduos exercícios de distanciamento desse conjunto de coisas que chamam de mundo. E conquistar esse mundo é fácil. Desafio mesmo é saber fazer silêncio.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Do Diabo para o músico gênio

Na fala do Diabo para o músico gênio, a fadiga e a reflexão crítica se mostram ser aquilo que estaciona o verdadeiro trabalho no campo das artes.

"O artista é irmão do criminoso e do demente. Pensas, por acaso, que já se haja realizado alguma obra interessante sem que seu autor tivesse aprendido a entender a existência de loucos e malfeitores? Que significa "mórbido" e "sadio"? A vida nunca logrou em dispensar o mórbido. Tiramos as coisas boas do nariz do Nada? Onde nada existe, o próprio Diabo não terá campo. Nós não criamos novidades. Limitamo-nos a desatar e libertar. Mandamos às favas a lerdeza, a timidez, os castos escrúpulos e as dúvidas. Estimulamos, e mediante a excitação produzida por um pouquinho de hiperemia, já suprimimos a fadiga, a pequena e a grande, a particular e a inerente à época. O que na era clássica talvez se pudesse obter sem a nossa intervenção, hoje em dia somente nós podemos oferecer. E nós oferecemos coisa melhor, unicamente nós oferecemos o autêntico e o verdadeiro. O que nós propiciamos já não é o clássico, meu caro, e sim o arcaico, o primordial, o que, desde tempos imemoriais, ninguém experimentou. Quem sabe ainda hoje, quem sabia até mesmo na época clássica o que é inspiração, o velho gênio criador autêntico, primevo, não deteriorado pela lerda ponderação, pelo mortífero controle do intelecto, o sagrado transe? O que ele, o diabo, deseja e proporciona é justamente a triunfante superação dela, através da ostentosa irreflexão."
(Thomas Mann - Doutor Fausto, p. 276 e 277)

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A experiência, a boa fé e a metafísica segundo François Châtelet


1 - Doxa    

    Num diálogo com um marxismo francês da década de 1960 e em defesa da filosofia, François Châtelet, em seu livro Logos e Praxis, faz uma interessante exposição sobre a oposição entre as duas noções gregas de logos e doxa com a finalidade de responder a seguinte questão: “que é, para o filósofo, a prova filosófica, e por que a procura? Essa procura corresponde realmente à vontade filosófica tal qual se manifesta desde Platão? A que tipo de prova chega então o filósofo?” (CHÂTELET, 1972. p. 87) Defenderá o autor que o projeto filosófico é estabelecer um enunciado integralmente legitimado. Essa resposta se difere de outra possível tese sobre o que seria a prática filosófica, segundo a qual ela é o esforço de sistematização de uma visão de mundo. Mas que projeto seria esse da filosofia de estabelecer um enunciado integralmente legitimado? Logos e doxa são os termos chave e de difícil tradução que permitem compreender esse projeto. Este último, Doxa, pode ser entendido, embora não sem algum inconveniente, como senso comum, bom senso, opinião. Mas, mais exatamente, doxa é

(...) um sistema de crenças manifestando-se na prática, na conduta, nos sentimentos e nas falas, crenças tais que, quem as possui nada mais deseja, e pensa, graças a elas, que atinge necessariamente a satisfação em todos os domínios: êxito na ação, felicidade na alma e justeza no julgamento. (CHÂTELET, 1972. p. 89)

    O homem da doxa não é acometido por dúvidas, por isso não problematiza o que quer que se lhe apresente. Se o “saber” que traz consigo é verdadeiro ou falso, pouco lhe importa; importa, antes, é se o que foi transmitido a ele lhe permite orientar-se na vida. Ele não submete o que “sabe” a nenhuma espécie de especulação crítica que pudesse, por um breve instante que seja, levantar alguma desconfiança quanto aos seus fundamentos. O que sabe já lhe basta. E sua atitude de desprezo diante de outros saberes e modos de existência diferentes dos dele se explica pelo seu estado de certeza imediata. “A doxa não formula questões: constitui antes uma coleção de respostas.” (CHÂTELET, 1972. p. 90)
    Partindo do princípio de que o surgimento da filosofia não foi propriamente um “milagre”, o contexto histórico de que resulta essa modalidade de pensamento não pode deixar de ser considerado. O que levou os primeiros pensadores gregos a inaugurarem o que depois veio a se chamar filosofia deve ser remetido ao desenvolvimento de novas técnicas artesanais e ao contato que os gregos tiveram com diferentes povos. Não há transformação de mentalidade que não seja consequência de transformações das condições de existência. Essa referência ao solo histórico permite perceber que nenhuma sociedade pode, por um período de tempo indeterminado, viver fechada no interior de si própria, reproduzindo indefinidamente os mesmos modos de vida e as mesmas relações com o que é externo a elas. E essas transformações materiais apontam para uma quebra de certezas determinante para o desenvolvimento da filosofia. Esta constituiu o esforço de oferecer uma resposta ao abalo dos fundamentos que sustentavam aquela cultura e aquela sociedade. A existência em sua dimensão histórica mais traumática talvez force os homens a pensar. Tendo se descortinado a eles um outro mundo e inaugurado um novo tempo, a filosofia nasce desse trabalho de reconstrução dos fundamentos que haviam sido perdidos com o esvaziamento das crenças tradicionais, dos mitos.

Essas cidades [gregas] criaram colônias que logo conquistaram a independência e fazem agora circular um novo espírito. É preciso elaborar todo um urbanismo, construir cidades, instituir constituições, e o pensamento tradicional está sendo submetido a duras provas. Para essas colônias, a tradição não basta mais. Esse espírito remonta até o centro; e, já no século VI, todas essas cidades são varridas por um vento de renovação. (CHÂTELET, 1995, p. 16)

    Os tempos de incertezas nos quais as antigas sabedorias não cumprem mais a função estabilizadora de antes fazem surgir um conflito ao mesmo tempo inédito e prático: o destino da polis. “A cidade de Péricles tornar-se-á o lugar de disputas apaixonadas em que se manifestam as diferentes doxoi.” (CHÂTELET, 1972. p. 92) E é nos diálogos em que se manifesta tal confronto, uma luta de interesses cujo vencedor é aquele que melhor argumenta. Por se tratar de uma disputa e não de uma troca, não é a verdade o que visa tal confronto verbal mas o convencimento. Mesmo que a falência do discurso mítico pudesse conduzir à oposição entre verdade e erro, isto não quer dizer que o homem da doxa em algum momento possa lançar sobre o que diz alguma reflexão crítica. Não duvidando de si, a “verdade” que o homem da doxa diz não admite outra diferente dela.

Para-si, cada uma das doxas se apresenta como verdade: qual, no entanto, dessas opiniões, é posse efetiva do verdadeiro? (...) – cada opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe dão razão. (CHÂTELET, 1972. p. 94)

Não sendo possível que uma doxa se imponha a outra senão pela via da persuasão, resta à linguagem a função de instrumento de convencimento, de arma retórica, e se todo e qualquer apelo à experiência tem alguma eficácia enquanto prova do que se diz é porque a própria linguagem do orador determina os sentidos dessa experiência. Para dizer de outro modo, se a experiência não serve de prova para o discurso verdadeiro ou de desmentido para o falso, sendo ela própria dependente da habilidade do orador, é porque ela está no campo da doxa, sujeita às forças resistentes dos esforços de se estabelecer os fundamentos da certeza.

Os acontecimentos, com efeito, dão sucessivamente razão a cada uma das partes conflitantes e, no conflito que opõe a tradição ao progresso, a agricultura ao comércio e ao artesanato, a oligarquia à democracia, a natureza à história, a ordem dada à justiça desejada, Aristófanes a Hipérboles e a Cleon, Sparta a Atenas – esse acúmulo indicando a riqueza do problema e de modo algum a pretensão de esgotá-lo – cada opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe dão razão. (CHÂTELET, 1972. p. 94)

    A experiência, portanto, não confirma e tampouco contradiz o que quer que seja por estar ela própria sob as determinações discursivas. O uso habilidoso da palavra com a capacidade de dobrar o público que escuta, de fazê-lo acatar o que é dito e experimentar os acontecimentos de acordo e a partir de interesses particulares, só é possível porque um discurso proferido traz uma visão de mundo que retroativamente lhe dá suas “razões”. E os sentidos que a experiência adquire resultam de um jogo retórico. Eis o motivo pelo qual a experiência, de suposta evidência, não poderia ser fonte de certeza.
    Se a habilidade dos homens da doxa, ao defenderem os seus interesses e suas paixões, consiste em ter fortes argumentos e em apelar para exemplos no campo da experiência que confirmam o que dizem ou que negam o que o outro diz, então, contra eles, só a violência. Ou seja, o limite do discurso da doxa, lá onde ele se revela frágil, é quando “esbarra” com a única força capaz de constrangê-lo, que é a violência. Ora, se apenas a força da violência, e não a evidência da verdade, pode ser maior que o jogo da doxa, isto significa que “nada entrou no lugar da antiga certeza.” (CHÂTELET, 1972. p. 96) No que diz respeito à determinação dos acontecimentos, a realidade se revela à mercê de forças que escapam a toda necessidade. O surgimento da filosofia, ao se contrapor à doxa, tem essa circunstância de contingência radical e absoluta como pano de fundo e “representa a vontade corajosa de sair dessa situação insustentável e de restituir ao homem a esperança de assistir ao êxito duradouro de uma ação sensata.” (CHÂTELET, 1972. p. 96) Porque a filosofia não é uma doxa entre outras, ela não poderia jamais tomar partido remetendo-se a esse ou aquele exemplo sustentado na experiência.

Contra as doxoi, invocando cada uma o testamento de um elemento desse horizonte único, o filósofo invoca o horizonte em seu conjunto; mais precisamente, na medida em que o invoca em seu conjunto e que esse conjunto é contraditório, mostra o absurdo do recurso ao que se costuma chamar de experiência, pois cada um pode nela encontrar o exemplo que legitima sua crença. (CHÂTELET, 1972. p. 97)

    Ao absurdo que a realidade histórica representa e que se impõe aos gregos, a filosofia pretende ser a resposta. Para isso, como parte desse esforço de escapar das parcialidades próprias da doxa, teve de excluir a dimensão da experiência, pois as interpretações que atribuem sentido a ela, por serem dependentes das paixões, afastam os homens da justeza e da felicidade.
    A utilização da linguagem pelos homens se revela ser o único fato comum entre eles. Não obstante estarem distantes das coisas tais como são e sem poderem contar com a experiência como via de acesso certo e garantido à realidade, sentem a necessidade de construir um caminho seguro através da elaboração do discurso coerente. O primeiro passo desse gesto que os conduziria à universalidade é separar, colocando num só grupo, tanto os discursos e falas que se contradizem entre si, pela parcialidade a que estão entregues e que representam, quanto a experiência igualmente parcial, limitada, aparente.
    O termo que aponta para aquilo que poderia restituir a confiança e certeza, em oposição à doxa, é logos. A busca pela verdade de algo para escapar das visões parciais ocorre através da construção do conceito sustentado na razão.

2 - Logos 

    O termo logos possui três significações, como Châtelet coloca. Inicialmente, é toda palavra cuja função é designar as coisas. Nesse primeiro sentido, meramente declarativo, ainda não existe a questão da justeza ou da adequação no que diz respeito à sua função de se referir às coisas no mundo: a palavra não é nada além do nome daquilo a que ela se refere. Em seguida, logos é discurso, é argumentação, “conjunto, com sentido, de palavras com sentido” (CHÂTELET, 1995, p. 25). Ou seja, é a fala que não se satisfaz apenas em dizer mas que se justifica perante outras falas, uma vez que também há outras falas que igualmente querem se impor. Ora, de que modo o logos, nesse segundo sentido, poderia, no embate com as doxas, se apresentar como verdadeiro e não como um discurso entre outros? Somo aqui conduzido ao terceiro sentido do termo logos: razão. Razão é isso que se encontra nos indivíduos que permite a eles combinarem as palavras de modo tal que um sentido demonstrável pode ser obtido. É essa boa ligação de palavras e frases que confere ao discurso o poder de dizer a verdade, de dizer as coisas como são na sua independência das mesquinharias mundanas e dos interesses parciais. Desse caráter desinteressado do discurso filosófico provém o poder de “suscitar a adesão do homem”, libertando-o ao que é verdadeiro. O filósofo, por acessar a razão, é “aquele que sabe formular as questões e dar as respostas convenientes.” (CHÂTELET, 1972, p. 100)
    Os discursos da doxa são generalizantes, como a filosofia. No entanto, diferentemente desta, não se fundamentam na universalidade da razão, motivo pelo qual sua pretensão não poderia ter legitimidade. As “palavras” de que se utiliza o discurso filosófico têm “consistência e solidez” por se tratarem, como implicado no sentido de logos, de conceitos. Fazer da palavra um conceito é eliminar dela as sombras de parcialidade – e, por extensão, de ambiguidade – para garantir a ela a efetividade do dizer, o poder de representar a verdade do que se diga. A palavra-conceito retira o mundo do âmbito do desejo daquele que discursa, pois ela não é a palavra deste ou daquele homem particular, mas “conhecimento do que é”. E isto implica, repetindo, a retirada da experiência do âmbito do que é evidente e que poderia servir como prova, retira qualquer possibilidade sua de ser a confirmação do que quer que seja, pelo motivo de que está sujeita aos interesses e paixões.
    O logos, enquanto “o domínio no qual se constrói o enunciado verdadeiro” (CHÂTELET, 1972, p. 101), só é efetivo se da parte do interlocutor houver boa fé. Ou seja, a boa vontade requisitada daquele com quem se estabelece o diálogo na busca pela verdade é o outro lado de que se necessita para que o sentido da verdade se complete. Esperar que o interlocutor seja alguém de boa fé, que tenha boa vontade para com a verdade, é contar com o fato de que ele, homem da doxa, estaria disposto a abrir mão de suas paixões e acatar a palavra que se impõe unicamente pela força da verdade que carrega. Mas sem esse consentimento de base daquele com quem se dialoga, o filósofo se vê desarmado. Não basta a fala coerente, mas que a exigência de coerência seja aceita pelo outro. E, além disso, que a verdade seja preferível à paixão. “O filósofo socrático realiza seu propósito sempre que a doxa aceita a filosofia.” (CHÂTELET, 1972, p. 101) Não haveria, portanto, um problema já na origem do projeto da filosofia, que, para que ele seja possível, todos os envolvidos no debate filosófico já compartilhem dos pressupostos do filósofo?
    A morte de Sócrates aponta para algo difícil de ser aceito: talvez a paixão seja preferível à verdade. Reinando a doxa, é a incoerência e as realidades mais imediatas e fugidias que ditam as regras. Ou, dito de outro modo, todo esforço de fundamentar as regras que regulem as relações entre os homens pautado em conceitos, por exemplo no conceito de justiça, ou de promover entre eles a verdadeira satisfação, por exemplo no conceito de felicidade, não terá êxito, pois o debate está sequestrado pelos interesses parciais. A cidade, então, se revela ser um lugar muito pouco seguro para o filósofo. Eis o problema no coração do projeto da filosofia:

(...) para que o filósofo viva, é preciso que a justiça reine; mas, para que isto seja possível é necessário que os homens acreditem na filosofia, que já sejam filósofos; ora, se assim fosse, a justiça já reinaria. Ou ainda: o discurso coerente, capaz de promover a boa ordem, o que garante a segurança do filósofo, não pode só ser ouvido num mundo no qual o filósofo, porque nele se acredita, já tem sua segurança garantida. Na Cidade injusta, a pedagogia filosófica é ineficaz: aos que são dominados pela paixão apresenta-se como um jogo estéril ou um disfarce do interesse. E não há meios, pelo discurso, de romper o reino da violência que se engendra a si mesma. (CHÂTELET, 1972, p. 104)

Referência Bibliográfica:
- CHÂTELET, François. Logos e Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.

domingo, 14 de junho de 2020

Vontade que ultrapassa

As cartas trocadas entre Adrian Leverkuhn e seu mestre, sr. Wendell Kretzschmar, são um interessante testemunho do que poderia parecer uma tomada de decisão como resolução de um impasse: que carreira seguir, a de teólogo ou a de compositor? Mas se é o destino que faz alguns nascerem para um determinado ofício, ou, o que dá no mesmo, se é tal ofício que reclama por aqueles que não podem se "dar ao luxo" da escolha, a trajetória que seguem não é algo que poderia caber em deliberações. Não pertence - no sentido de propriedade - a Adrian o desejo pela música e se tornar compositor. Isto que o move é onde está mergulhado, ao mesmo tempo que é dele que esse movimento que o ultrapassa necessita para se atualizar.

"A arte progride e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se, até se tornarem indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros. Devido à necessidade vital que a arte tem do progresso revolucionário e da realização do renovamento, depende ela do veículo do mais intenso sentimento subjetivo, que acha chochos, inexpressivos e obsoletos os recursos ainda corriqueiros e se serve daquilo que aparentemente não é vital, a saber, da predisposição pessoal para a lassitude, do fastio intelectual, do asco que acomete a quem perceba o 'segredo do feitio', da maldita inclinação de ver as coisas à luz da sua própria paródia, do 'senso cômico'. Repito: o desejo de vida e progresso, inerente à arte, põe a máscara dessas tíbias qualidades pessoais para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se." (Doutor Fausto, p. 159)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A música, a genialidade e o diabo

É inegável a íntima relação entre o filme Amadeus e o livro Doutor Fausto. Milos Forman certamente recorreu à obra de Thomas Mann quando planejou o filme. Tanto neste quanto no livro, além de sermos conduzidos para a "questão musical", há um personagem que narra e outro dotado de uma genialidade misteriosa e intrigante. A extraordinária capacidade de engendrar inusitadas articulações sonoras, comum a Mozart e a Adrian Leverkuhn, é o tema dessas duas obras. Em Amadeus, a dimensão vulgar e obscena de Mozart que suas risadas nos deixam perceber contrasta com o seu talento, como se toda a sua nobreza estivesse em outro lugar. Quanto a Adrian, um interiorano, é nas esferas estelares de sua prodigiosa imaginação onde ele recolhe os elementos para as suas composições. Salieri, o narrador do filme, também é músico, ao passo que Serenus, narrador de Doutor Fausto, não. Mas são esses dois que melhor fornecem o modelo que nos permite compreender, não simplesmente uma profunda admiração, mas o que seria um amor por aqueles em quem se identifica uma qualidade rara. A inveja que Salieri sentia de Mozart, por exemplo, é um claro sinal do seu reconhecimento de que aquele artista era a encarnação da plenitude divina. A inveja é uma forma avessada de amor. Salieri e Adrian buscavam a composição na qual a perfeição pudesse transparecer. Mozart, não. Foi a Música que encontrou a sensibilidade daquele homem para, através daquelas mãos, dar-se a si própria a forma sublime. A música ainda em estado latente parecia ditar a Mozart como ela deveria ser vertida em movimentos sonoros. Salieri, como Adrian, fez o pacto. Em troca da excelência no campo das artes do som abriu ele mão do sexo. Mas se não foi bem sucedido em sua empreitada talvez tenha sido porque o celibato não fora o bastante. Colheu não mais que a fama entre os homens e nenhuma de suas obras lhe permitiu que seu nome ocupasse sequer uma página nos livros onde só os imortais têm lugar. Adrian, ao contrário, embora também tenha feito o pacto, em troca da capacidade de sentir amor obteve a verdadeira glória, a que lhe conferiu um registro na eternidade própria aos grandes mestres. Ora, a boa e a troca são determinantes da qualidade do pacto, e se um fracassou lá onde o outro obteve sucesso, isso se deveu ao fato de que um fez negócio com Deus, ao abrir mão do sexo, enquanto que o outro, com o diabo ao abrir mão do amor.

quarta-feira, 18 de março de 2020

"Quem não morreu na Espanhola?"

(Nelson Rodrigues)

A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos... Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.
As formas de morrer conheceram novos parâmetros. Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.
A forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. Vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: "Aqui tem um! Aqui tem um!". E, então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.
Se os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito menos. Nem para esperar o desfecho da morte. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos.

De repente, passou a gripe.

Mas com o fim da epidemia as coisas não mais foram as mesmas. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: 'Quem não morreu na Espanhola?'. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.