quinta-feira, 9 de abril de 2020

A música, a genialidade e o diabo

É inegável a íntima relação entre o filme Amadeus e o livro Doutor Fausto. Milos Forman certamente recorreu à obra de Thomas Mann quando planejou o filme. Tanto neste quanto no livro, além de sermos conduzidos para a "questão musical", há um personagem que narra e outro dotado de uma genialidade misteriosa e intrigante. A extraordinária capacidade de engendrar inusitadas articulações sonoras, comum a Mozart e a Adrian Leverkuhn, é o tema dessas duas obras. Em Amadeus, a dimensão vulgar e obscena de Mozart que suas risadas nos deixam perceber contrasta com o seu talento, como se toda a sua nobreza estivesse em outro lugar. Quanto a Adrian, um interiorano, é nas esferas estelares de sua prodigiosa imaginação onde ele recolhe os elementos para as suas composições. Salieri, o narrador do filme, também é músico, ao passo que Serenus, narrador de Doutor Fausto, não. Mas são esses dois que melhor fornecem o modelo que nos permite compreender, não simplesmente uma profunda admiração, mas o que seria um amor por aqueles em quem se identifica uma qualidade rara. A inveja que Salieri sentia de Mozart, por exemplo, é um claro sinal do seu reconhecimento de que aquele artista era a encarnação da plenitude divina. A inveja é uma forma avessada de amor. Salieri e Adrian buscavam a composição na qual a perfeição pudesse transparecer. Mozart, não. Foi a Música que encontrou a sensibilidade daquele homem para, através daquelas mãos, dar-se a si própria a forma sublime. A música ainda em estado latente parecia ditar a Mozart como ela deveria ser vertida em movimentos sonoros. Salieri, como Adrian, fez o pacto. Em troca da excelência no campo das artes do som abriu ele mão do sexo. Mas se não foi bem sucedido em sua empreitada talvez tenha sido porque o celibato não fora o bastante. Colheu não mais que a fama entre os homens e nenhuma de suas obras lhe permitiu que seu nome ocupasse sequer uma página nos livros onde só os imortais têm lugar. Adrian, ao contrário, embora também tenha feito o pacto, em troca da capacidade de sentir amor obteve a verdadeira glória, a que lhe conferiu um registro na eternidade própria aos grandes mestres. Ora, a boa e a troca são determinantes da qualidade do pacto, e se um fracassou lá onde o outro obteve sucesso, isso se deveu ao fato de que um fez negócio com Deus, ao abrir mão do sexo, enquanto que o outro, com o diabo ao abrir mão do amor.

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