sábado, 18 de março de 2017

O caos e as possibilidades de gozo

Como em "A peste: o sonho da festa ou um pesadelo político?", de 15 de julho de 2009, o que está em jogo nos dois curtos trechos de Morte em Veneza, de Thomas Mann, é a relação entre o caos e as possibilidades de gozo e prazeres a que mesmo em sonhos ou devaneios nos entregamos não sem ruborizar. Semelhante entrega tem como preço a própria vida! É lido no filme de Caetano Veloso, Cinema Falado, um texto de Mann onde aparece uma pequena frase que condensa o que talvez seja a ideia mais fundamental do romancista: “Quem viu a beleza com os olhos já está confiado à morte”. Será como nos relata o livro de Gênesis, quando Moises cai ao chão ao ver de relance a manta de Deus? Quem sabe se visse algumas fibras a mais se desintegraria no instante mesmo daquela aparição! Glória e olhar não parecem ser compatíveis. Quanto ao romance de Mann, preso a um sentimento nunca previsto, a uma paixão de qualidade distinta e superior, Aschenbach seguia o jovem de nome Tadzio. Mas entregar-se à promessa do novo prazer que o garoto representava resultará na dupla dissolução do que o personagem era. Em primeiro lugar dissolução de sua pessoa, dos valores morais em cujos princípios sempre se apoiara, valores que o constituíam, presentes em suas ações, gestos e opiniões e que o identificavam para os outros e para si próprio. Em segundo, dissolução de seu corpo, da matéria de que dependia a sua vida. Havia uma ameaça real de morte: Veneza sofria com uma epidemia. O fantasma biológico e invisível que eram os miasmas sondava as vidas que insistiam naquele lugar, naquela cidade. Semelhante tema pode ser encontrado em A peste, de Albert Camus, ao que Foucault em Os Anormais chamou de “sonho literário da festa” (página 58): “Há uma literatura da peste que é uma literatura da decomposição da individualidade: toda uma espécie de sonho orgástico da peste, em que a peste é o momento em que as individualidades se desfazem, em que a lei é esquecida. (...) A peste passa por cima da lei, assim como passa por cima dos corpos.” Para não me estender mais no que deveria ser breve, vamos aos trechos de Morte em Veneza.

"Mas o barulho, a gritaria, ampliados pelo eco da barreira de montanhas, aumentavam, recrudesciam, dilatavam-se numa loucura arrebatadora. Vapores oprimiam os sentidos: o cheiro acre dos bodes, o odor dos corpos arquejantes, um hálito como que emanado de águas putrefatas, e ainda um outro, familiar – cheiro de feridas e de doença disseminada. Seu coração retumbava acompanhando os timbales; seu cérebro girava, foi tomado de furor, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à ronda do deus. O gigantesco símbolo de madeira obsceno foi descoberto e erguido: passaram a urrar a senha ainda mais desenfreados. Bramiam com lábios escumantes, excitavam-se mutuamente com trejeitos lúbricos e mãos cúpidas; rindo e gemendo espetavam-se uns aos outros com os aguilhões e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, neles estava agora aquele que sonhava e que pertencia ao deus estranho. Sim, eles eram ele mesmo quando se atiraram sobre os animais, dilacerando e massacrando, e devorando postas fumegantes; eram ele mesmo quando, no musgo revolvido do solo, teve início um acasalamento sem limites, como sacrifício ao deus. E sua alma saboreou a luxúria e o desvario da degradação." (Thomas Mann, Morte em Veneza, Pg. 86)

"Pois a paixão, tal como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga esperança de encontrar aí algum proveito. Assim, Aschenbach experimentava uma obscura alegria pelo que, camuflado pelas autoridades, se passava nos becos sujos de Veneza – esse segredo pernicioso da cidade, que se confundia com seu próprio segredo e em cuja preservação ele também estava tão empenhado. Pois a única preocupação do apaixonado era que Tadzio pudesse partir, e ele reconhecia, aterrorizado, que já não saberia viver, caso isso ocorresse." (Pg. 67,68)

domingo, 5 de março de 2017

O Carnaval e a gripe espanhola

A atmosfera de intenso erotismo mesclado a uma sensação apocalíptica se tornou a experiência chave do carnaval. O pano de fundo dessa festa é a possibilidade do fim, a iminência da morte, vivenciada na forma de um gozo sem limites, único e último. Na crônica abaixo, publicada em A menina sem estrela, NELSON RODRIGUES escreve sobre o carnaval do ano de 1919, o ano seguinte ao da Gripe Espanhola. Ao que parece, foi o carnaval daquele ano que deu forma a todos os carnavais seguintes até os dos nossos dias.



O CARNAVAL E A GRIPE ESPANHOLA

Começou o carnaval [de 1919] e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: – e por que? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas. Aquele carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata – é mais cruel e mais ressentido do que um Nero ultrajado. A morte vingou-se, repito, no carnaval. Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. E tudo explodiu no sábado de carnaval. Vejam bem: – até sexta-feira, isto era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte... "Caímos muito de categoria", dirão vocês. Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola – e tão humilhados e tão ofendidos – que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam: – "Na minha casa não racha lenha. / Na minha racha, na minha racha. / Na minha casa não falta água. / Na minha abunda, na minha abunda." As pessoas se esganiçavam nos quatro dias. Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; o Rio de Machado de Assis estava morto. O carnaval da espanhola foi de um erotismo absurdo. Daí a sua tristeza hedionda. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.

(A menina sem estrela, de Nelson Rodrigues.)