domingo, 5 de março de 2017

O Carnaval e a gripe espanhola

A atmosfera de intenso erotismo mesclado a uma sensação apocalíptica se tornou a experiência chave do carnaval. O pano de fundo dessa festa é a possibilidade do fim, a iminência da morte, vivenciada na forma de um gozo sem limites, único e último. Na crônica abaixo, publicada em A menina sem estrela, NELSON RODRIGUES escreve sobre o carnaval do ano de 1919, o ano seguinte ao da Gripe Espanhola. Ao que parece, foi o carnaval daquele ano que deu forma a todos os carnavais seguintes até os dos nossos dias.



O CARNAVAL E A GRIPE ESPANHOLA

Começou o carnaval [de 1919] e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: – e por que? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas. Aquele carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata – é mais cruel e mais ressentido do que um Nero ultrajado. A morte vingou-se, repito, no carnaval. Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. E tudo explodiu no sábado de carnaval. Vejam bem: – até sexta-feira, isto era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte... "Caímos muito de categoria", dirão vocês. Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola – e tão humilhados e tão ofendidos – que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam: – "Na minha casa não racha lenha. / Na minha racha, na minha racha. / Na minha casa não falta água. / Na minha abunda, na minha abunda." As pessoas se esganiçavam nos quatro dias. Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; o Rio de Machado de Assis estava morto. O carnaval da espanhola foi de um erotismo absurdo. Daí a sua tristeza hedionda. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.

(A menina sem estrela, de Nelson Rodrigues.)



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