quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Jacques Rancière e o paradoxo da democracia


Parece que existe um paradoxo no coração mesmo da ideia de democracia. Não é exagero afirmar que provém dele o mal-estar que hoje se vive. O livro de Jacques Rancière, Ódio à democracia, lança uma luz sobre essa questão ao traçar um interessante diagnóstico de um ódio a que se tem assistido ao Estado democrático. E se um tal ódio não é um fenômeno simples surgido do nada, talvez seja porque ele de algum modo foi sendo gestado ao longo das últimas décadas. Ora, em torno do termo “democracia” não existe propriamente um consenso, motivo pelo qual um esforço crítico de pontuar muitas das noções associadas a ele pode afastar algumas das sombras em meio às quais estão envoltos muitos dos impasses com que as pessoas têm se deparado no cenário político e social atual, sobretudo o brasileiro. Nas redes não é difícil encontrar textos e vídeos em que encontramos falas de ódio contra as instituições próprias aos governos chamados de democráticos.

Mas, afinal, qual é o paradoxo contido na noção de democracia? A princípio, poder-se-ia dizer que se trata de um sistema de governo que se pauta e promove as liberdades, no entanto não suporta os seus excessos e por isso os combate. Essa ilimitação dos desejos é o que os críticos da democracia consideram ser parte, só que às avessas, dos totalitarismos. Depois da Guerra Fria, tendo se tornando inútil o conceito de totalitarismo, para eles é a democracia que assume os seus traços. Nos anos 1990,

por trás da saudação obrigatória aos vitoriosos direitos humanos e à democracia recuperada, o que acontecia era o inverso. Uma vez que o conceito de totalitarismo não tinha mais uso, a oposição de uma boa democracia dos direitos humanos e das liberdades individuais à má democracia igualitária e coletivista também se tornou obsoleta. (RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 27.)


Eis algo que pode ser percebido nas críticas presentes nos discursos antidemocráticos. O problema é que ao combater tais “excessos”, isto é, a “desordem das paixões àvidas de satisfação” (idem, p. 14), não correria o risco de o governo democrático acabar por levar a cabo determinadas ações próprias àquelas outras formas de governo às quais ele se opõe e combate? O que se estaria assistindo é o deslocamento da ilimitação dos desejos de indivíduos consumidores atomizados para a ilimitação do poder de Estado. Ilimitação, excesso, seja de um lado, seja de outro, seriam a própria ruína da democracia.

Compreendendo que a democracia quando levada às últimas consequências encontraria o seu próprio colapso, ao mesmo tempo que as estratégias de contenção que visam estabelecer os seus limites para que ela própria seja viável implicam, paradoxalmente, a sua negação mesma, o que fazer então? Isso nos leva a perguntar: a democracia é realmente possível?

Aprofundemos no tema do declínio da autoridade para encaminharmos bem a questão que está sendo levantada, tema que, segundo uma determinada leitura do drama democrático apresentada por Rancière, apontaria para a “desordem das paixões àvidas de satisfação”. Perguntemos: como conciliar algum tipo de comando com igualdade? Em outras palavras, é possível produzir uma comunidade (o artifício comunitário) a partir de um amontoado de sujeitos iguais que a democracia pressupõe sem que se conte com um sujeito exceção dotado do poder de manter um grupo coeso? Por trás das falas dos manifestantes que vão às ruas expressar seu ódio às instituições que impedem o país de se tornar uma ditadura, nota-se o desejo por esse um dotado efetivamente de poder para “mudar”, afinal, segundo pensam, o Brasil, depois de catorze anos com o PT no governo, se desmantelou por completo. A revolta deles em relação à corrupção se alimenta desse horror diante do desmantelamento que nos últimos anos não cessou de ser noticiado. A palavra “caos”, desde a reeleição de Dilma Rousseff (quando a tensão política e a polarização se intensificaram), passou a abundar nos noticiários e nas redes sociais. Ora, o Bolsonaro pareceu ser, aos olhos de muitos, esse elemento exceção que traria a “ordem” de volta, mas com a condição de que fossem anulados os demais poderes que continuamente o atrapalhariam, como depois ficou claro. (Bolsonaro tem a palavra “messias” no nome e “mito” como forma de designá-lo.) Não é o fim da política? Nos termos de Jacques Rancière, sim, pois “a política se define na separação do modelo pastor alimentando seu rebanho.” (idem, p. 48) Isso torna claro a que espécie de angústia Bolsonaro se apresenta como resposta: diante do vazio (democracia é o “império do nada”), muitos clamam “pelo retorno do pastor perdido”.

Mas Rancière afirma que “a desmedida democrática não tem nada a ver com uma loucura consumista qualquer.” (idem, p. 56) A “perda da medida” que possibililita o desenvolvimento da democracia é de outra ordem. O que poderiam ser as relações de autoridade senão aquilo que se sustenta sobre a possibilidade de um título que confere ao seu portador um poder de não só conduzir mas de estruturar o corpo social, isto é, de fazer dele um “todo”? Ora, a “medida” cuja perda caracteriza a democracia é o que legitimaria semelhante “título”. Uma outra espécie de título, então, torna-se necessária, a que confere ao seu portador “uma superioridade que não se funda em nenhum outro princípio além da própria ausência de superioridade.” (idem, p.56) Essa inexistência de uma superioridade natural implica no seguinte: só existem iguais. E a Política nasce dessa constatação. Política, democracia e igualdade são termos que se implicam mutuamente, conclui-se. O autor escreve:

Resta a exceção ordinária, o poder do povo, que não é o da população ou de sua maioria, mas o poder de qualquer um, a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante e de governado. O governo político tem assim um fundamento. Mas esse fundamento o transforma igualmente em uma contradição: a política é o fundamento do poder de governar em sua ausência de fundamento. O governo dos Estados é legítimo apenas na medida em que é político. É político apenas na medida em que repousa sobre sua própria ausência de fundamento. (idem, p. 66)

domingo, 8 de setembro de 2019

Cometa Halley

Hoje eu acordei com saudades do cometa Halley. Durante todo um mês daquele ano não se falou em outra coisa que no tal do cometa. Era cometa Halley pra lá, cometa Halley pra cá... Até na novela se ouvia falar dele. Para um menino como eu naquela idade, aquelas semanas foram vividas como um acontecimento cósmico, como se estivéssemos todos mais próximos do céu, nos juntado a ele. E hoje eu acordei com saudade daquele cometa, que, se dizia, só retornaria 75 anos depois, mais ou menos o tempo de uma vida. Fiz, ainda naqueles anos, os cálculos e percebi que, caso conseguisse vê-lo, eu estaria diante de algo que só aos 84 anos de idade eu veria novamente. Senti-me, por um lado, feliz em pensar que havia chances de acompanhá-lo na sua passagem seguinte; por outro, triste em saber que os mais velhos à minha volta não teriam aquela sorte porque já estariam todos mortos. E por dias o cometa afetou algumas considerações que eu fazia: à luz de sua duração projetada pela minha imaginação, eu estava cercado de gente morta. No outro extremo, o cometa seria a testemunha muda dos meus dias de criança. O Halley me pareceu ser, portanto, o ponteiro de um gigantesco relógio, cuja volta completa demora os tais 75 anos, o relógio dos relógios, sem as tradicionais divisões que fatiam os nossos dias em condicionados intervalos idênticos: o seu tempo vasto ligava a minha vida de ponta a ponta, como também me permitia vislumbrar uma grandeza cósmica inédita. Mas vendo ou não o tal cometa, isto é, se as nuvens me permitissem liberando a minha visão, enxerguei nele como que uma carta de mim para mim. A experiência de ver o cometa pela segunda vez, quase oito décadas depois e já com uma vida inteira atrás de mim, seria o ponto que coincidiria com a experiência infantil de quando ele me sobrevoou riscando o meu céu. E o que o meu cometa me dirá? Eu hoje acordei com saudades do cometa Halley.