sábado, 30 de junho de 2018

Sobre o conto O ESPELHO de Machado de Assis

Jacobina, o personagem que narra a sua história em O espelho, afirma, contrariando o senso comum de seu tempo, que em todo homem “não há uma só alma, mas duas. (...) Cada criatura humana traz duas almas consigo”, uma interna e outra externa. Complemento ortopédico da alma é todo objeto que funciona como alma exterior. Através do que nos é narrado, somos levados a reconhecer que existe em nós uma dependência a uma imagem sem a qual não nos constituímos num eu. É isto o que significa o imaginário como a dimensão fundamental constitutiva do sujeito. O eu não se constitui se não se reconhecer em alguma coisa que vem de fora, numa imagem externa que o espelhe. (Cf. o texto de Lacan: A etapa do espelho e a formação do eu.) A constituição psíquica é dependente de sua imagem alienada, externa. Sendo o homem um ser que depende de alguma coisa que está fora dele, isso nos permite compreender a natureza do outro e o seu carater ameaçador. Por que o outro me ameaça? Porque ele pode roubar de mim a minha imagem. A isto Freud chamou de Narcisismo das pequenas diferenças. (Cf. o conto de Machado Verba testamentária.) A psicose seria a falta de referência especular, materna - é a desagregação do eu, como no filme Psicose, de Hitchcock. A alma externa é essa referência a ser "encontrada", o complemento ortopédico da alma "interna".

Sem a imagem, qual é o sentimento que a criança tem de si? Ela é um feixe de sensações, estímulos, prazeres e desprazeres disparatados. A essa visão espasmódica de si, como encontramos em O Espelho de Guimarães Rosa, se opõe a imagem no espelho. Mas o que é um espelho? É tudo aquilo que mimetiza alguém. É da mímese de onde vem a unidade desse alguém. Um adulto pode mimetizar uma criança, servir-lhe de espelho. Quando ele a mima ele está mimetizando-a, isto é, está dando a ela uma referência de si própria. Como no conto, todos mimavam o Jacobina. Depois de os escravos fugirem, ele torna-se ninguém. Machado descreve, então, a dinâmica desse nada/ninguém em que as relações de trocas imaginárias estão ausentes. Quando ele olha para o espelho esperando ver dois, ele vê nenhum. A imagem não se forma. Vê apenas os vestígios de um corpo que não comparece. Primeiro, somos nada. Depois, somos dois. Por fim, somos um quando o eu se forma (pela imagem).

Nascemos pré-maturos, nascemos feto. Para nos constituirmos, todo o equipamento das imagens, dos símbolos, das palavras. A falta e o jogo de imagens estão por toda parte. Mas uma imagem nunca nos representa plenamente. Não seria a compreensão disso o que visaria um processo de análise? Que outras imagens nossas podem e devem ser construídas? Não se trata, portanto, de uma procura, mas de uma busca, de uma construção. A farda é um valor que reconstitui o Jacobina, farda de Alferes, patente de algum prestígio embora a mais baixa da Guarda Nacional (instituição do período do império). Os alferes tinham algum poder de mando e estão na base do mandonismo brasileiro.

O conto adquire grande riqueza se o lemos a partir dos três registros de que fala a psicanálise. São eles: o real (o vazio aterrorizante experimentado na ausência do outro de cujo olhar depende a minha identidade), o imaginário (as almas externas nas quais me alieno e que “tapam” o real) e o simbólico (o meio pelo qual administramos o fato de nunca termos de nós uma imagem plena). Um outro conto de Machado, A teoria do medalhão, é sobre um pai que ensina ao filho como melhor investir-se de alma externa. Trata-se de uma prática cínica em oposição a uma prática clínica (psicanalítica).

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Sobre uma possível contribuição do pensamento de Slavoj Žižek para o ensino da disciplina de filosofia

1 – Os primeiros anos de atuação de um professor de filosofia em sala de aula são aqueles em que ele se depara pela primeira vez com determinadas dificuldades relacionadas direta e especificamente à sua prática enquanto docente. Uma delas é o risco de a disciplina que leciona tornar-se um discurso, se não vazio, no mínimo chato na perspectiva dos alunos. No caso de estudantes do ensino médio ou dos anos anteriores, será que isso se daria em razão da pouca idade deles? Sim, se o ensino dessa disciplina prender-se à mera transmissão de conceitos excessivamente precisos, ensino por demais informativo e “erudito”, se as questões trazidas por ele requererem vivência e maturidade intelectual por parte dos ouvintes. É neste sentido que François Lyotard escreve que a escola “atira” para

o curso filosófico espíritos que lá não entram. A sua resistência parece invencível, precisamente porque não tem por onde se lhe pegue. Falam o idioma que lhes ensinou e ensina o mundo, e o mundo fala velocidade, gozo, narcisismo, competitividade, sucesso, realização. O mundo fala sob a regra da troca econômica, generalizada sob todos os aspectos da vida, incluindo as afeições e os prazeres. Esse idioma é completamente diferente do idioma do curso filosófico, é-lhe incomensurável. Não há juiz para decidir este diferendo. O aluno e o professor são vítimas um do outro. A dialética ou a dialógica não pode ocorrer entre eles, apenas a agonística. (LYOTARD, 1993, p. 125)


Mas, por outro lado, não, pois

seja na criança, seja nos jovens ou nos adultos, a busca da verdade está sempre ligada a uma decepção, a uma desilusão, a uma dúvida, a uma perplexidade, a uma insegurança ou, então, a um espanto e uma admiração diante de algo novo e insólito. (CHAUÍ, 2000, p. 113)


As citações acima demarcam dois pólos opostos, sendo a passagem do primeiro para o segundo o que pretendemos pensar. Na citação de Chauí, a “busca da verdade” tem em sua origem o que exprimem os termos “decepção”, “desilusão”, “dúvida”, “perplexidade”, “insegurança”, “espanto”, “admiração”, “novo”, “insólito”, todas elas expressões que apontam para uma quebra na normalidade, para um rompimento no fluir natural dos eventos. Dito isto, o interesse por filosofia, ao menos em potência, é na verdade de todos, mesmo que muitos ainda não saibam disso. (Essa afirmação nos remete àquela de Lacan em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, que diz “ser filósofo quer dizer interessar-se por aquilo em que todo o mundo está interessado sem saber.”) Como, então, pôr em prática um ensino de filosofia que vá ao encontro do aluno, que o capture em seu vivo interesse, naquilo em que se vê implicado, pelo tema de debate trazido à sala pelo professor? Em poucas palavras, o que estamos propondo pensar é o desafio do ensino de filosofia para “não-filósofos”, isto é, estudantes em idade escolar com interesses diversos que não se relacionam direta e necessariamente com filosofia.

Mas não é apenas isto. Se parássemos neste ponto no que estamos propondo nada de verdadeiramente novo estaria sendo proposto. Como não é pequeno o número de autores com “metodologias” de ensino de filosofia, não temos aqui a pretensão de nos somarmos a essa lista, mas de estabelecer um diálogo com algumas dessas propostas a partir de considerações feitas pelo filósofo e psicanalista Slavoj Žižek acerca do que seja fazer filosofia. De que maneira os conceitos com que este autor trabalha poderiam contribuir para pensarmos uma prática de ensino de filosofia, tendo em vista a dificuldade mesma da matéria no que diz respeito tanto a sua forma quanto a seu conteúdo? Cabe aqui lembrar que seus livros são atravessados por referências a filmes europeus e hollywoodianos, a literatura erudita e popular, e até a piadas, recurso que não tem outro propósito que o de facilitar a transmissão de conceitos complexos sem com isso enfraquecê-los em nenhum de seus aspectos.

Para pensar a prática de ensino da disciplina de filosofia é preciso começar com algumas considerações sobre o que seja filosofia. Este questionamento prévio não visaria apresentar o “conteúdo” a ser ensinado, mas que a questão acerca de sua transmissibilidade é antes de tudo um problema filosófico. Portanto, dupla tarefa: primeiro, compreender como Slavoj Žižek estrutura seu pensamento; segundo, como trazer para o debate em torno do ensino de filosofia os elementos determinantes do modo como procedem as análises do pensador esloveno. De que maneira poderia o ensino de filosofia ser orientado a partir desse filósofo? Eis a nossa questão de base.

Os autores com os quais pretendemos dialogar à luz das concepções de Slavoj Žižek são Dermeval Saviani e Silvio Gallo. Partindo da noção de problema utilizada por eles, da variação de sentido nos usos que dela fazem, colocar-nos-emos no centro do debate que envolve o ensino da disciplina.

2 – Faremos uma breve exposição dos autores tomando como fio condutor a noção de problema. Começaremos com Dermeval Saviani para, em seguida, falar de Silvio Gallo e concluir com Slavoj Žižek.

Dermeval Saviani, em Educação: do senso comum à consciência filosófica, pergunta acerca da problematiciade do problema. O contexto de sua colocação é a tentativa de compreender a importância da filosofia para se pensar a educação, do significado de uma filosofia da educação: “Em que a filosofia poderá nos ajudar a entender o fenômeno da educacão?” (SAVIANI, 1996, p. 9) Para respondê-la, porém, ele levanta uma outra, a da “função da filosofia em si mesma”.

O que leva alguém a fazer filosofia? Na trilha da argumentação do autor, não sendo o filosofar uma atitude natural e espontânea do homem, o que faz deflagrar o pensamento filosófico é precisamente o que chama de problema. Mas o que é um problema? Existir é agir, sentir, pensar no mundo cuja normalidade pode ser interrompida por algo. A filosofia começa por um questionar acerca desse algo que interfere, que modifica a ordem a que toda marcha regular está submetida. Problema é o nome desse algo que confere urgência ao pensamento filosófico. Em poucas palavras, o objeto da filosofia “são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência.” (SAVIANI, 1996, p. 10) Mas um problema nele mesmo não é a priori exclusivo a nenhum campo específico, podendo ser ele visado pelas artes, religião, ciência ou senso comum. A abordagem filosófica de um problema consiste numa atitude específica.

Para pensar o problema, faz-se necessário recuperar a problematicidade que o termo implica. Para tanto, é preciso esclarecer algumas possíveis identificações ao termo distinguindo-o de alguns outros comumente considerados como sinônimos. Alguns destes termos são questão, mistério, dúvida. Em relação ao termo questão, Saviani nos fornece o seguinte exemplo: uma questão de prova diante da qual um aluno se encontra, mesmo que ele não saiba respondê-la, sabe que o professor sabe a resposta e que desse aluno espera a resposta correta. Ou seja, trata-se de uma questão e não de um problema, porque a sua resposta, apesar de o aluno a ignorar, é já conhecida. Mas e se a resposta a uma determinada questão não for conhecida por ninguém, como é o caso dos mistérios e enigmas, se estaria então diante de um problema? O autor argumenta que problema também não é sinônimo de mistério ou enigma, pelo motivo de que na experiência religiosa mistério pode mesmo ser a própria “solução” de todos os problemas, mistério enquanto objeto de fé. É precisamente no desconhecido que o crente confia. A radicalidade de um autêntico problema é tal que não apenas as estruturas do conhecido perdem qualquer estabilidade mas também aquelas do desconhecido em que se baseia a fé do crente. Quanto ao termo dúvida, termo a que problema também não deve ser identificado, nele vemos implicado possibilidades, hipóteses igualmente válidas mas excludentes quando se está frente ao que quer que se apresente como duvidoso. A dúvida não clama por uma solução necessária: “é perfeitamente possível manter as duas hipóteses sem que isto represente problema algum.” (SAVIANI, 1996, p. 12) A dúvida quanto ao que fazer numa noite de sexta-feira, por exemplo, não configura um problema.

O que seria, então, um problema verdadeiramente problemático? Se problema não é o mesmo que questão, mistério ou dúvida, qual é sua essência? Segundo o autor, a necessidade é traço essencial da problemática do problema. Uma questão, que em si mesma não constitui um problema, tornar-se-ia problemática se a resposta a ela seja aquela sem a qual a continuidade mesma da existência estivesse sob ameaça. Essa nota essencial da nessecidade determinante do conceito de problema também vale para dúvida. A dúvida problemática é aquela que, por uma necessidade interna de ser superada, não poderia não ser dissipada.

Como se experimenta um problema? Haveria tantos problemas quanto indivíduos, uma vez que quem os experimenta são os indivíduos? Um problema é vivido por alguém mas não é meramente subjetivo ou psicológico. Como Saviani coloca, a existência dos homens, construída a partir de circunstâncias objetivas dadas previamente, traz consigo impasses concretos que ultrapassam o âmbito invidual, desafios reais consequentes de uma realidade histórica compartilhada. Eis o que será afrontado pela reflexão filosófica.

A reflexão do tipo filosófica possui algumas características. Segundo o autor, são elas a radicalidade (isto é, que se deve ir até as raizes do problema), o rigor (isto é, que se proceda de forma sistemática) e a globalidade (isto é, que o problema não seja examinado parcialmente mas numa perspectiva de conjunto). Na consideração deste último aspecto Saviani coloca a reflexão filosófica como a atitude mental que está na origem da própria prática científica, esta diferenciando-se daquela por sua localidade, por sua delimitação a um objeto específico.

3 – Quanto ao professor Silvio Gallo, autor de um trabalho intitulado Metodologia do ensino de filosofia, a partir das formulações de Deleuze e Guattari sobre o que seria fazer filosofia ele propõe pensar um processo educativo de filosofia que “não seja um mero ‘contar histórias’ e seu estudo um mero ‘escutar histórias’”. (GALLO, 2012, p. 71) Trata-se mesmo de um desafio não reduzir o ensino de filosofia à transmissão de conteúdos de história da filosofia e seu aprendizado à sua simples assimilação. É em relação a essa concepção prévia do que seja o ensino da disciplina, sustentada por uma “imagem do pensamento”, que o autor quer tomar distância a fim de pensar uma outra didática possível. Como promover em sala de aula uma prática que vá além do “pensar o já pensado”, da memorização do que é ensinado pelo “explicador”?

“A filosofia, esse conhecimento aberto por excelência,” (GALLO, 2012, p. 70) é a disciplina onde outra ideia do que seja compreensão deve ser considerada. Para tanto, cabe a ela pensar outro horizonte de entendimento no interior do qual se possa pensar um processo de ensino que se caracterize como uma prática viva, que convoque o aluno à atividade durante o seu desenrolar (um ensino ativo e um aprendizado ativo). Como pretendemos mostrar, o autor quer pensar outra concepção de ensino de filosofia que “aposta mais no problema do que na solução.” (GALLO, 2012, p. 70) Ao contrário da lógica da explicação de trazer soluções, o ensino vivo e ativo de filosofia considera o problema como o verdadeiro motor do pensamento.

Sendo a noção de problema noção central para o que está sendo proposto, como levar o aluno a exprimentá-lo? É fazê-lo passar pelo “sentimento de ignorância” ou “sentimento filosófico”. A expressão também é de Rancière, e quando Gallo faz uso dela é porque a considera fundamental tanto para os estudantes quanto para os professores. Sendo o “sentimento de ignorância” ou “sentimento filosófico” elemento necessário a todos os envolvidos no processo de ensino/aprendizagem, ele é a tomada de distância das verdades cristalizadas. Tal capacidade de estranhamento, cultivada por uma sensibilidade que nunca se entrega ao caminho preguiçoso de reconhecimento do que se apresenta como “óbvio” e “evidente”, constitui a entrada no problema.

Se para Silvio Gallo a prática da filosofia não consiste na solução de problemas, como já dissemos, ela, no entanto, é criação de conceitos. Compreender a filosofia como um processo de criação é condição básica para se afastar de um ensino enquanto recognição, isto é, de um ensino como reprodução do já conhecido, do já pensado. É essa a tese de Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?, pois o que pretendem com tal compreensão é pensar a filosofia como o pensamento da diferença e não como representação.

Para sermos breve, organizamos em momentos a maneira como Gallo desenvolve o trabalho que propõe. Acreditamos que da explicitação dessas etapas resultará clara compreensão da relação entre problema e criação de conceito:

a) Primeiro, experimentar um problema filosófico por meio do contato com um tema que afete o estudante. O tema poderá ser o de um filme, um poema, um conto, uma música, uma pintura, desenho animado, história em quadrinhos, etc. A sua relevância estará precisamente no problema que o tema toca, pois é em torno dele que todo enredo/narrativa gira.
b) A segunda etapa consiste na explicitação desse problema que o tema nos pôs em contato. Aqui que se iniciaria a realização de um debate. A dificuldade em pensá-lo evidenciará a necessidade de se ampliar as formas de o alunos pensarem.
c) O recurso à história da filosofia é o passo seguinte. Que conceitos da tradição nos permitirão delimitar o problema trazido pelo tema de modo que o esboço de uma Ideia comece a ganhar contornos? É nesta etapa que o professor terá a oportunidade de fazer com o aluno um percurso pela história da filosofia, mas ele o fará ¬¬– e isso é importante lembrar — a partir de um problema, justamente aquele suscitado pelo tema com que se iniciou todo o processo.
d) O último momento é o de conceituação, isto é, o de criação de conceito, que não significa necessariamente a criação de um absolutamente novo, mas no uso de um já existente mas deslocado do sistema originário de que fazia parte. É esse uso do conceito para pensar um problema específico em que consiste propriamente o ato criativo.

Pensar um problema trazido por um determinado tema à luz de um instrumental conceitual filosófico não significa solucioná-lo. Em filosofia não se soluciona problema, posto que o seu objetivo é essencialmente outro. Podemos afirmar que o objetivo da filosofia, tal como Silvio Gallo o coloca, é anterior a qualquer tentativa de formulação de uma resposta definitiva, é ultrapassar a camada da narrativa literal, seja de um filme, um poema, um conto etc., para aquela do pensamento da obra. Podemos afirmar que a pergunta acerca do que pensa tal filme, tal conto, aquele poema, aquela pintura etc., é o que visa um processo vivo de ensino de filosofia.

4 – A partir do que está sendo apresentado sobre problema em Dermeval Saviani e em Silvio Gallo, de que maneira Slavoj Žižek contribuiria para a prática de ensino de filosofia? Para responder à questão levantada, antes é preciso esclarecer o lugar a partir de onde o esloveno pensa. Na introdução de Interrogating the Real seus editores escrevem que Slavoj Žižek é “estritamente fiel aos seus dois grandes amores, Lacan e Hegel, de quem ele nunca hesitou”. (ŽIŽEK, 2005, p. 2) Em Arriscar o impossível, Glyn Daly escreve que “o paradigma žižekiano (...) extrai sua vitalidade de duas grandes fontes: o idealismo alemão e a psicanálise”. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 9) É dessa articulação estabelecida por ele, portanto, que resulta a originalidade do seu pensamento e onde podemos situar o lugar a partir do qual realiza as suas análises nos campos da política, da cultura e do modo de funcionamento da ideologia no mundo contemporâneo. Mas de que maneira o esloveno faz essa relação entre um autor e outro, entre um importante movimento filosófico, como foi o idealismo alemão, e a psicanálise? A resposta a essa pergunta passa pelo entendimento de como Žižek lê os autores que utiliza. Eis o que consideramos ser chave para a compreensão de seu pensamento.

Sendo modesto o nosso interesse e sem querer estender demais, façamos uma rápida exposição da importância que tem Immanuel Kant para Žižek. Por que Kant? Porque ele foi o filósofo que lançou as bases da filosofia alemã da virada do século XVIII para o XIX, período em que se desenvolveu o idealismo alemão. Para Žižek, esse é precisamente o momento em que a filosofia conquista propriamente o seu terreno, isto é, quando ela deixa de competir com a ciência no tocante ao conhecimento do mundo "exterior" diferenciando-se apenas pelo seu grau de generalidade. Para Žižek, “tudo começa com Kant e com sua ideia de constituição transcendental da realidade.” (ŽIŽEK, 2013, p. 18) Ele diz também que “a filosofia como tal é kantiana (...), [que] é somente com Kant (com a sua concepção do transcendental) que a verdadeira filosofia começa.” (ŽIŽEK, 2008, p. 73)

Muitos poderiam ser os nossos interesses por aquilo que Žižek privilegia na filosofia de Kant, mas por enquanto foquemos num só: a concepção transcendental da realidade. Se o pensamento de Kant foi uma revolução – revolução copernicana na filosofia, como o próprio Kant coloca – é porque ele constitui uma verdadeira virada no modo de fazer filosofia. Não entraremos nos pormenores na consideração dessa “virada transcendental” operada por Kant, mas ela nos diz muito sobre o procedimento levado a cabo por Žižek. A revolução que caracteriza o pensamento de Kant consiste no deslocamento da investigação filosófica: se antes a filosofia visava um conhecimento acerca do absoluto, “exterior” ao sujeito, das coisas-em-si-mesmas, ela se torna justamente a investigação das condições de possibilidade do conhecimento do mundo. Em outros termos, se antes a perguntava era: como é o mundo em si mesmo, fora de mim?, ela passou a ser: quais são as condições de possibilidade desse mundo que percebo enquanto tal?

Aqui se encontra o nosso interesse: em pouquíssimas e simples palavras, estamos às voltas com um questionamento acerca daquilo que estrutura o nosso saber e nossa percepção de mundo, uma investigação preliminar de nossas pré-compreensões que estruturam o nosso entendimento de “mundo”. São “saberes” subjacentes, inconscientes, determinantes do modo como agimos, sentimos, pensamos, opinamos, julgamos, percebemos – capacidades humanas essas referidas a um mundo cuja existência não é em si mas para um sujeito. A pergunta “como é o mundo?” deve ser substituída pela: “por que o mundo se mostra da forma como o percebo?”. Colocada a pergunta em termos transcendentais, a resposta passa necessariamente por uma análise das estruturas a priori do sujeito cognoscente. Em outras palavras, o mundo que aparece para nós tem a sua constituição derivada não do mundo nele mesmo mas de estruturas que se encontram nos sujeitos. Eis o que visa a filosofia transcendental. Žižek nos fornece um exemplo anacrônico a respeito do modo como Aristóteles compreende os seres humanos e vivos em geral: será que o pensador grego estuda o ser, logo toda a sua obra é uma ontologia, ou o que ele nos apresenta são os pressupostos envolvidos na compreensão que se tem do ser, logo o que ele faz é uma análise transcendental? Sem obviamente querer entrar no debate de se a sua filosofia seria ou não uma ontologia, mas apenas para ilustrar essa outra forma de abordagem, Žižek diz que a descrição de Aristóteles de

um ser humano, como aquilo que se move para fora de si mesmo, é menos uma teoria do mundo que uma teoria do que significa dizermos “isto está vivo”; ou seja, ele confronta o entendimento prévio que temos quando, por exemplo, identificamos algo como um ser vivo. Nesse sentido, trata-se realmente de um método hermenêutico, não ontológico. (ŽIŽEK, 2006, p. 38)


Esse mesmo exemplo é repetido em Menos que nada:

Aristóteles se esforça para definir a vida (...) – um ser vivo é algo movido por si mesmo e que tem em si a causa do próprio movimento – ele não explora de fato a realidade dos seres vivos, antes descreve o conjunto de noções preexistentes que determinam o que sempre-já compreendemos por “ser vivo” quando designamos os objetos como “vivos”. (ŽIŽEK, 2013, p. 18)


As análises de Žižek caminham nesse sentido. A filosofia transcendental de Kant e a psicanálise não partem da consideração de que a existência do mundo seja algo que se encontra fora do sujeito, como uma realidade existente em si, nem como uma realidade subjetiva, como concebe o idealismo ontológico, mas precisamente num terceiro domínio, o do transcendental. Então o trabalho, que provisoriamente chamaremos de transcendental-psicanalítico, será discernir as condições de possibilidade de uma determinada realidade, dos modos de concebê-la e, no limite, do próprio aparecer das coisas e do mundo. Qualquer envolvimento com entidades do mundo tem pressuposto todo um horizonte de pré-compreensões que fazem essa mediação.

5 – Duas questões. Primeiro, como o pensamento de Slavoj Žižek se relacionaria com o que pensam os dois outros autores sobre a noção de problema tal como expusemos? Segundo, como os resultados desse diálogo entre autores tão diferentes poderiam contribuir para pensarmos o ensino de filosofia e ampliar suas possibilidades didáticas? Diríamos que a nossa ideia é pensar o espaço da aula de filosofia como aquele em que se promoverá o exercício de uma investigação onde, num primeiro momento, o que viriam à tona seriam as estruturas preexistentes que condicionam o modo como se dá nos alunos o entendimento do mundo. Os alunos, ao entrarem em contato com um determinado tema, junto com o professor iniciariam a análise crítica, por exemplo, por meio de um debate. O tema, cuidadosamente escolhido, poderá ou não ser aquele que produza nos alunos algum estranhamento pelo seu grau de novidade. Mas as tentativas de os estudantes pensarem esse material e as dificuldades ou mesmo impossibilidades com que se depararão para darem conta dele é o que irá revelar os limites conceituais desses alunos diante do tema trazido. Nunca será unânime o sentido que qualquer material terá para eles nem é a procura por um consenso o que deve nortear as aulas. Mas será das múltiplas e variadas opiniões que poderá ser desenvolvido um jogo dialético ao modo socrático a partir do qual os limites dos pressupostos desses alunos poderão ser pontuados, limites em razão dos quais eles se vêem impossibilitados de darem conta do tema de modo satisfatório. A tais limites chamamos de impasses.

Um tema configura um impasse na medida em que põe à prova os limites de nossas pré-compreensões. Chega-se ao seu cerne através de um enquadramento do problema que esse tema figura. Trata-se mesmo de uma busca: do impasse ao problema. Se Saviani e Gallo partem daquilo que chamam de “problema”, a aula de filosofia orientada pelo que estamos propondo quer chegar a ele. Será preciso ultrapassar a camada superficial do tema, o que demandará dos alunos/investigadores o trabalho de reconfigurarem suas compreensões desconstruindo pressupostos. Incapacidade de comentar um assunto, emitir opiniões carregadas de senso comum e repetir clichês são casos que tornam manifesta a realidade dos limites. Mas tem o aluno a consciência disso? A consciência crítica que ele adquire acerca de si é a consciência dos limites de suas pré-compreensões. Para tanto, o passo mais importante a ser dado é o “passo para trás” de repensar a questão, redefini-la, enfim, de efetivamente realizar a busca pela formulação apropriada do problema de modo que se dissipe toda e qualquer mistificação em que o tema possa estar envolto. E pensar o material trazido para a sala é o caminho que a aula deverá percorrer na direção do fim almejado, que é o de ter clareza desses limites que resultam da má formulação do problema. Bem colocado o problema, ele já é a sua própria solução. Eis o que consideramos ser o gesto fundamental que abrirá espaço para o aumento de repertório dos estudantes e ampliação do quadro conceitual que lhes permita enxergar com maior largueza. Se as aulas de filosofia devem ser estimulantes, se elas devem instigar e intrigar os alunos, acreditamos ser esta uma interessante proposta.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Ver

Não pinto, não desenho,
posto que, como acreditam
os cegos no que tocam,
acredito eu no que vejo:
a solidez das coisas
me constrange de
fazer rabiscos,
traçar formas,
duplicar em semelhanças.
Não ousaria um tal sacrilégio.
Reproduzir é reduzir à miragem.
O que sobrevive à sua própria imagem?
De meus olhos dogmáticos me
resta o jogo de deslocar palavras,
que sei não serem coisas mas posições.
E se as mudo de lugar é
porque não as levo a sério.
Como figuras, brincando de montar
sentenças vejo no que dá para,
assim, alcançar algum princípio
de desmanche de todo o visto;
o antes maciço não redunda
em ilusão, mas se multiplicam
as suas camadas, que são,
antes, etapas de mim.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Em si

Um instante acontece sem
tecido algum preexistente a ele;
nenhum espaço, mínimo que seja,
subjaz às coisas antes
de serem elas coisas.
É sobre um fundo de nada
que o que existe se desdobra,
pois não tem do mundo um “fora”
e só o que há, há.
Metamorfósica,
sem forma última
ou primeira,
em fluxo por um ralo
sem o outro lado,
de si para si mesma
a vida escoa
sem porquê.