sábado, 30 de junho de 2018

Sobre o conto O ESPELHO de Machado de Assis

Jacobina, o personagem que narra a sua história em O espelho, afirma, contrariando o senso comum de seu tempo, que em todo homem “não há uma só alma, mas duas. (...) Cada criatura humana traz duas almas consigo”, uma interna e outra externa. Complemento ortopédico da alma é todo objeto que funciona como alma exterior. Através do que nos é narrado, somos levados a reconhecer que existe em nós uma dependência a uma imagem sem a qual não nos constituímos num eu. É isto o que significa o imaginário como a dimensão fundamental constitutiva do sujeito. O eu não se constitui se não se reconhecer em alguma coisa que vem de fora, numa imagem externa que o espelhe. (Cf. o texto de Lacan: A etapa do espelho e a formação do eu.) A constituição psíquica é dependente de sua imagem alienada, externa. Sendo o homem um ser que depende de alguma coisa que está fora dele, isso nos permite compreender a natureza do outro e o seu carater ameaçador. Por que o outro me ameaça? Porque ele pode roubar de mim a minha imagem. A isto Freud chamou de Narcisismo das pequenas diferenças. (Cf. o conto de Machado Verba testamentária.) A psicose seria a falta de referência especular, materna - é a desagregação do eu, como no filme Psicose, de Hitchcock. A alma externa é essa referência a ser "encontrada", o complemento ortopédico da alma "interna".

Sem a imagem, qual é o sentimento que a criança tem de si? Ela é um feixe de sensações, estímulos, prazeres e desprazeres disparatados. A essa visão espasmódica de si, como encontramos em O Espelho de Guimarães Rosa, se opõe a imagem no espelho. Mas o que é um espelho? É tudo aquilo que mimetiza alguém. É da mímese de onde vem a unidade desse alguém. Um adulto pode mimetizar uma criança, servir-lhe de espelho. Quando ele a mima ele está mimetizando-a, isto é, está dando a ela uma referência de si própria. Como no conto, todos mimavam o Jacobina. Depois de os escravos fugirem, ele torna-se ninguém. Machado descreve, então, a dinâmica desse nada/ninguém em que as relações de trocas imaginárias estão ausentes. Quando ele olha para o espelho esperando ver dois, ele vê nenhum. A imagem não se forma. Vê apenas os vestígios de um corpo que não comparece. Primeiro, somos nada. Depois, somos dois. Por fim, somos um quando o eu se forma (pela imagem).

Nascemos pré-maturos, nascemos feto. Para nos constituirmos, todo o equipamento das imagens, dos símbolos, das palavras. A falta e o jogo de imagens estão por toda parte. Mas uma imagem nunca nos representa plenamente. Não seria a compreensão disso o que visaria um processo de análise? Que outras imagens nossas podem e devem ser construídas? Não se trata, portanto, de uma procura, mas de uma busca, de uma construção. A farda é um valor que reconstitui o Jacobina, farda de Alferes, patente de algum prestígio embora a mais baixa da Guarda Nacional (instituição do período do império). Os alferes tinham algum poder de mando e estão na base do mandonismo brasileiro.

O conto adquire grande riqueza se o lemos a partir dos três registros de que fala a psicanálise. São eles: o real (o vazio aterrorizante experimentado na ausência do outro de cujo olhar depende a minha identidade), o imaginário (as almas externas nas quais me alieno e que “tapam” o real) e o simbólico (o meio pelo qual administramos o fato de nunca termos de nós uma imagem plena). Um outro conto de Machado, A teoria do medalhão, é sobre um pai que ensina ao filho como melhor investir-se de alma externa. Trata-se de uma prática cínica em oposição a uma prática clínica (psicanalítica).

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