Conclui-se disso que, longe de termos nos livrado das proibições e entrado numa época livre de toda repressão, o que parece é que estamos ainda mais enredados num processo de culpabilização, só que às avessas: sentimo-nos culpados não por gozar demais, mas por gozar de menos. Ora, nessa dita era "pós-ideológica" do "tudo pode", em que pé fica a discussão em torno da possibilidade de uma ética? Num contexto como o descrito acima, por qual via ainda é possível elaborar uma posição ética?
Comecemos, então, pela exposição de duas posições que ilustram o que poderia ser uma atitude ética. A primeira consiste em "seguir princípios éticos sejam quais forem as consequências no mundo real, de rejeitar como "patológicas" as consequências enquanto critério de valor moral, de insistir na pureza da minha vontade, da minha intenção, como o maior dos critérios." (Slavoj Žižek, A visão em paralaxe. p. 71.)
Essa primeira tentativa de pensar o que poderia ser uma postura propriamente ética se resume na consideração da intenção do agente como o elemento determinante, isto é, toda atitude verdadeiramente ética seria aquela motivada pela boa intenção do sujeito. Se as consequências decorrentes de seu gesto foram como ele previra, isso é algo que escapa à sua alçada. A essa posição uma outra se opõe, a que considera que "a verdade dos meus atos é revelada em suas consequências reais". (Idem, p. 71.)
Temos, portanto, duas diferentes maneiras de caracterizar o que poderia ser a atitude ética, que podem ser resumidas no seguinte dilema: a atitude ética está na intenção daquele que age ou nas consequências da sua ação? Žižek argumenta que as duas posições são problemáticas porque ambas pressupõem uma "harmonia preestabelecida entre sujeito (indivíduo) e substância, a condição fundamentalmente "benevolente" da substância. Mas e se eu não consigo me reconhecer inteiramente na substância (...) porque a substância social de mim mesmo é "má" e, como tal, converte todos os meus atos no oposto do que pretendiam realizar?" (Idem, p. 71.)
Embora não caiba aqui nos aprofundarmos no conceito de substância, vale apresentar um exemplo que o próprio Žižek nos fornece que ilustra bem essa inadequação a que se refere a última citação. A não benevolência da substância com o sujeito que tem como causa a lacuna da subjetividade (moderna) se encontra representada no famoso quadro de Leonardo Da Vinci pintado na aurora da modernidade, a Mona Lisa, quadro em que a figura da mulher no primeiro plano parece discrepante do fundo, como se este fosse uma paisagem artificial do tipo cenário, paisagem outra substancialmente diferente com relação à mulher que posa. A discrepância entre figura e fundo no quadro de Da Vinci é análoga ao desencaixe do sujeito no ambiente. Para Žižek, é essa lacuna intransponível o que impede a qualificação de uma ação como sendo ética a partir tanto das intenções quanto das suas consequências. À luz dessa subjetividade discrepante é que se deve compreender o impasse das duas posições quanto ao valor dos atos – pureza de intenção/consequências reais.
Žižek afirma haver uma terceira posição que não se apóia num meio universal que permitiria julgar as experiências morais. É precisamente neste ponto que podemos introduzir o conceito de ato e ao mesmo tempo avaliar a importância desse conceito na obra de Slavoj Žižek. Se o caminho que Žižek segue é o da ética lacaniana do real por entender que é num tal campo justamente onde ocorre a "batalha do espírito com si mesmo" (Slavoj Žižek, O mais sublime dos histéricos. p. 38.), o que está em jogo aqui são precisamente as coordenadas da própria realidade, como elas são reproduzidas ou ultrapassadas. Ato é, para Slavoj Žižek, o modo por excelência de todo agir autenticamente ético. E ele é por natureza opaco: sua realização sempre implica risco, tanto em relação à imprevisibilidade de suas consequências reais quanto em relação à imprevisibilidade de seu sentido em razão da temporalidade dos juízos morais que tentarão depois localizá-lo. Como diz o próprio Žižek, "não podemos garantir [o sentido de uma ação] com exatidão porque não podemos responder com antecedência pela maneira como nossos atos atuais afetarão nossa visão retrospectiva futura". Esse aspecto da temporalidade dos juízos morais, ao mesmo tempo que elimina a possibilidade de um universal com base no qual poderíamos fazer um julgamento a priori de uma ação e estabelecer o seu sentido, também põe em evidência a contingência que marca a experiência moral do sujeito.