Há relações da música com isso que foi dito acerca do teatro. Se Deleuze nos fornece essas indicações, o que dizer da música? Isto é, na música o que permite a sua passagem para o moderno? Ocorre nela, como no teatro, alguma amputação que a liberte da representação, da condição representativa? A resposta a essa pergunta passa pelo tonalismo.
Como período que se segue ao modalismo, o tonalismo consiste na instauração de um eixo central em música. É em torno desse centro que gravitam as outras notas musicais, ora se afastando ora se aproximando rumo a uma resolução final. O centro é estabelecido pelo privilégio de uma nota – aquela que funcionará como o seu tom – que subordinará a si todas as outras. A escuta tonal percebe tensão entre aquelas "opostas" (três tons distantes, intervalo conhecido como trítono), que, quando tocadas, simultânea ou sucessivamente, parecem clamar por um alívio. Enquanto uma das notas sobe meio-tom, a outra desce e ambas se integram às vozes do acorde do primeiro grau (só falaremos aqui de um tipo de resolução. Por exemplo, o intervalo entre as notas Fá e Si (ambas formam um trítono) soa dissonante para o ouvido impregnado de tonalidade, o que leva tais notas a se repelirem, como que obedecendo a uma força repulsiva: enquanto Fá desce meio-tom, Si sobe. No lugar de Fá tem-se agora o Mi e no de Si tem-se o Dó, resolvendo deste modo num intervalo consonante o que era (escutado como) conflito: de Fá e Si, respectivamente a sétima menor e a terça maior do acorde dominante de Sol, para Mi e Dó, respectivamente a terça maior e a fundamental do acorde de Dó. O tonalismo é justamente a exploração estética dessas forças harmônicas (repulsão/atração) que atuam sobre as notas pressionando-as.
Da dinâmica do aumento/diminuição de tensão através do afastamento/aproximação de certas notas resulta uma narrativa. A música por meio desse jogo parece contar alguma coisa. No lugar de uma fruição pura, ouve-se uma história. Mas o que essa história diz? A despeito da imensa variedade de temas, o que a forma narrativa em geral encena, diretamente ou por desvios provisórios, é a resolução de um impasse fundamental ao final de seu percurso, é a performance de um (re)encontro com a Coisa cuja falta mesma fez deflagrar o movimento que permitiu a obra em questão existir. A forma narrativa é essencialmente uma busca ao mesmo tempo que uma promessa; o repouso final conclusivo, a sua realização máxima, é a imagem de um encontro mas também o momento imediatamente anterior ao seu desaparecimento absoluto. Em suma, suspensão de um conflito que se encontra para além de qualquer causa particular, fantasmático (re)encontro com o que não está em lugar nenhum pelo motivo de que não existe. Eis o caráter ideológico de toda narratividade das artes representativas. Em música, esse absoluto que poria fim ao mal-estar da desde sempre frustrada e eternamente renovada busca é sugerido pela forma mesma de um centro tonal.
No sistema modal, bastava que uma melodia se desenrolasse no espaço de uma determinada divisão entre oitavas. Sobre as notas não havia pressão de nenhuma natureza que as encaminhasse para uma direção (pre)determinada. É no tonalismo que isso coisa acontece e o que o caracteriza. Mesmo em casos de modulação, o que ocorre é o deslocamento do centro, mas de forma alguma a sua dissolução. Fazendo um paralelo com a análise de Deleuze sobre o teatro de Carmelo Bene, com relação à música, não seria a ideia de um centro, própria do sistema tonal, aquilo mesmo que se deveria suprimir? Há, parece, uma equivalência entre protagonismo, no teatro, e centro tonal em música. Ambos são "elementos de poder", isto é, a instância que amarra não apenas a si mas sobretudo entre si as partes que constituem uma obra cujas identidades passam por esses focos privilegiados que determinam as funções que cumprem. Insistência do poder Régio? Encarnação do fantasma do soberano? Estrutura de um poder que ainda reverbera por não se saber já findado?
Para a plena realização do caráter moderno em música é necessário que ela dê um passo tornando-se ela própria descentrada, que cada um de seus pontos periféricos possua a importância que só possuía o centro. Inversamente, tornar aquele que ocupa o lugar central "desimportante" como aqueles das periferias. Eis a estratégia que permite desfazer o lugar de centralidade que conferia algum privilégio a quem o ocupava. A escuta que clama pelo centro, sedenta por sentido, dificilmente experimentará na nova música outra coisa que o caos. A impressão primeira que se tem com essa nova música muitas vezes é a de uma desorganização generalizada, seus tortuosos e ásperos caminhos melódicos lembrando um desenho desorientado ou de difícil traço. Soa brutal essa música a estes ouvidos impregnados de hábitos auditivos.
Essa música quase inconcebível faz aflorar uma verdade outra. Sendo a esquematização de um mundo sem centro, de um mundo sem finalidades (o que é a finalidade senão um centro no eixo do tempo?), ela anuncia não um outro mundo, mas diz acerca deste mesmo (aquém do qual ainda se encontra o imaginário tonal) em que o homem já não é o coroamento da criação mas um bicho que fala e trabalha; onde a terra não é o centro de um universo mas um planeta cujo movimento de translação não descreve um círculo (figura geométrica com um centro) e sim uma elipse (figura de centro indeterminado); onde o sol é uma entre muitas estrelas cujas proporções acentuam e amplificam a indiferença e o silêncio de todas as coisas; onde de Deus só resta o sopro que faz ouvir a palavra "deus". Seria a superação do tonalismo o capítulo seguinte a todas essas etapas? Se ouvimos do ditado que "o diabo mora nos detalhes", acrescentamos que "Deus habita nas sombras". O sistema tonal e toda forma de protagonismo talvez ainda sejam sombras desse Deus.
Pós-tonalismo é o seu nome. O termo atonalismo não parece apropriado em razão de ter o prefixo de negação "a", como se a música que prescindisse de tom fosse desprovida de um centro por alguma incapacidade, quando o que ocorre é um ultrapassamento. É no interior de um tal quadro que se pode delinear alguns caminhos já abertos: a dodecafonia e o serialismo são alguns caminhos possíveis da nova música. Mas para além desses e de todo campo ainda virgem frente ao esgotamento tonal, tratou-se aqui da conquista de uma nova escuta, da construção de um novo ouvido, quem sabe o princípio de uma trajetória para o homem ser ele próprio de outra espécie, aquela ainda por vir pelo próprio exercício de sua liberdade.