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- Freud levanta a seguinte questão: quais são as possíveis fontes de onde se origina o sentimento de religiosidade? O primeiro sentimento que responderia a essa questão acerca da fonte da religiosidade ele chama de "sentimento oceânico", sentimento que muitos parecem carregar dentro de si. E o que é o sentimento oceânico? Freud diz ser a "sensação de eternidade", o "ser-um com o universo", a sensação de uma "vinculação indissolúvel, de comunhão com todo o mundo exterior". Mas semelhante sentimento constituiria o sinal de um vínculo fundamental com o absoluto ou poderia ser ele submetido à análise que revelaria as suas fontes no aparelho psíquico? Para Freud, tal sentimento oceânico que supostamente explicaria o sentimento de religiosidade não é primário mas provém da conservação, no âmbito psíquico, do que ele chama de "primário sentimento do Eu", sentimento que se caracteriza pela indistinção entre o Eu e o mundo exterior. É através de uma análise do Eu e de seus limites em relação ao não-Eu (isto é, ao de "fora", à realidade externa) que Freud irá diferenciar esse sentimento primário do "sentimento do Eu da época madura". Excetuado alguns casos de patologia, a fronteira entre o interior e o exterior responsável pela "instauração do princípio de realidade" só adquire contornos nítidos nos indivíduos psiquicamente maduros. Todo indivíduo no início de seu processo de maturação passa pelo período em que o Eu e o mundo exterior se confundem. Mas poderia a religiosidade ser explicada por um narcisismo ilimitado remanescente, pelo "sentimento oceânico" que resulta da sobrevivência na vida adulta do "primário sentimento do Eu"? Apesar da longa explanação acerca desse tópico, segundo Freud não é isso o que explica a origem do sentimento de religiosidade. Para ele, o que explica tal fenômeno é o sentimento de "desamparo infantil" que se prolonga na vida adulta, a religião sendo justamente a resposta a uma "nostalgia do pai" que aquele sentimento desperta. O desamparo infantil frente ao poder do destino clama por uma proteção do tipo paternal.
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- O que os homens esperam da vida? O que desejam alcançar nela ou dela eles exigem? Freud, nesse segundo capítulo de O Mal-Estar na Civilização, afirma ser a felicidade. A compreensão de que a felicidade é o que se busca na vida só é possível pela perspectiva do princípio do prazer. Na breve referência que faz à ideia de um sentido da vida, ele diz ser o sistema religioso que estabelece algo desse gênero. Em poucas palavras, não existe um sentido da vida fora de um sistema religioso. E se a religião é uma forma de o homem se iludir, a noção de um sentido da vida não deixa de ser igualmente ilusória. Mas é em relação à felicidade que o homem vive a contradição. Se por um lado não tem como alcançá-la, por outro não pode renunciar à sua busca. O caráter irrealizável do programa da felicidade se dá em razão de uma série de fatores: o nosso corpo fadado ao declínio e à dissolução; a brutalidade das forças destruidoras da natureza que nos abatem; as decepções decorrentes das relações com os outros. (Este último parece ser o mais doloroso de todos.) O outro aspecto do sofrimento é a não resposta aos nossos desejos por parte do mundo, é a recusa do mundo exterior em saciar nossas carências de maneira plena. Uma forma de se livrar desse tipo de sofrimento pode ser através do domínio de nossos desejos, como prega a sabedoria oriental. Mas o que nos leva a moderar as pretensões à felicidade são aquilo que a ameaça. E isso lança um problema: entregar-se incondicionalmente às pulsões, inibi-las completamente ou governa-las? Existe, no entanto, uma quarta possibilidade a que poucos têm acesso, a sublimação, para Freud a "mais fina e elevada" forma, que consiste em deslocar as metas dessas pulsões para atividades socialmente reconhecidas, como as artes e as ciências. Eis como não sucumbir a uma busca desenfreada pelo gozo nem padecer de tédio por falta de. Freud enumera alguns "métodos pelos quais os homens se esforçam em obter a felicidade e manter à distância o sofrer". Entre os paliativos que nos permitem manter afastada a miséria da vida estão as formas de divertimento (que nos distraem), as gratificações substitutivas (como algumas artes que nos iludem face à realidade) e as substâncias inebriantes (que entorpecem o corpo alterando o nosso sentir). Essa lista está longe de esgotar as "técnicas de vida" de afastar, ou ao menos administrar, os sofrimentos. Ao trabalho, ao amor e à fruição da beleza Freud também faz referência como meios para esse fim.
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- Freud aponta para a difícil relação entre a liberdade e as restrições que a sociedade impõe ao indivíduo. Existe entre elas uma oposição radical ou algum grau de negociação, de equilíbrio, de conciliação é possível? Em poucas palavras, como ser feliz sem romper com as exigências do grupo do qual se faz parte? A sorte da felicidade parece depender de uma resposta a esta pergunta. Das três fontes de onde provém o sofrer mencionadas no capítulo anterior, Freud se aprofunda, aqui, naquela que decorre da dificuldade de os homens se relacionarem entre si. Será a partir dessa dificuldade que ele compreenderá as causas do fracasso do processo civilizatório. Dessa espécie de sofrimento resulta algo como uma nostalgia de um tempo pré-civilizatório, de um tempo em que ainda se vivia em condições primitivas. Se as relações dentro do quadro fornecido pela civilização nos fazem sofrer o pior sofrimento, os tempos anteriores ao estabelecimento da civilização só poderiam ter sido melhores. A "hostilidade à civilização" e a sua contraparte de um desejo por um retorno (impossível) a um suposto estado de natureza refletem o caráter insuportável que a privação de uma vida em sociedade impõe ao homem civilizado. Mas as exigências da cultura sendo "abolidas ou atenuadas significariam um retorno a possibilidades de felicidade"? O que parece é que na própria constituição psíquica se esconde "um quê da natureza indominável". A civilização é construída sobre a renúncia das pulsões, o que implica que a frustração de desejos não satisfeitos assombra os vínculos sociais. Como ultrapassar esse potencial ódio pelo próximo que toda cultura implica? As conquistas humanas e os progressos sobre a natureza, ao mesmo tempo que foram o meio de o homem não ficar à mercê dos acasos e contingências do mundo exterior e de aumentar a possibilidade de afastamento da infelicidade, tais conquistas e progressos parecem justamente acentuar o mais doloroso sofrer, que é o "sofrimento social", o sofrimento que se tem com a existência do outro. Sem dúvida que tais avanços apartaram um enorme leque de diferentes qualidades de dores, mas esses avanços não se traduziram num maior grau de felicidade. O homem se aproximou de certos "ideais culturais", cada indivíduo se tornou um "deus protético" através das conquistas tecnológicas, mas nem por isso se sentiu mais feliz. Os meios civilizatórios de manter à distância o mal que decorre da difícil relação entre os homens, o conjunto de regras que regulam os vínculos deles entre si, como a justiça e o direito, parece não terem sido suficientes. Mas existe o que Freud chama de sublimação, de que depende toda a evolução da cultura: deslocamento da pulsão, "situar em outras vias as condições de sua satisfação". Eis o que viabiliza atividades mais elevadas, como as ciências e as artes, e confere maior valor à vida: "seríamos tentados a dizer que a sublimação é o destino imposto à pulsão pela civilização."