segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Foucault e o liberalismo econômico

Em O nascimento da biopolítica Michel Foucault pergunta: a que se refere o termo homo oeconomicus? Aos indivíduos? Sim, responde, mas desde que em sua compreensão se dê ênfase à dimensão de suas condutas. Ou melhor: homo oeconomicus é, antes de tudo, uma perspectiva que se tem sobre as condutas dos homens e ao mesmo tempo um modo de consideração destes enquanto seres de condutas determinadas. Dito de outra maneira, o homo oeconomicus é uma grade que permite entender certas condutas como racionais enquanto que outras não. Sendo o homo oeconomicus o ponto em que a análise econômica e uma psicologia do comportamento se encontram, observa-se uma ampliação, ou mesmo generalização da análise econômica a todas as esferas da vida; toda conduta, na medida em que se espera dela um enquadramento nos preceitos do que se entende por um “comportamento racional”, é objeto de uma análise econômica.

Qual é a prescrição pressuposta pela análise econômica? Alocação ótima de recursos raros a fins alternativos. Isso nos permite pensar que o homo oeconomicus, objeto da análise econômica, é aquele que aceita “a realidade como ela é”, no sentido de que a sua conduta, sendo racional, é precisamente sensível às modificações do meio, que a elas ele responde da melhor maneira. Enfim, trata-se do homem adaptável. Integradas à economia, as técnicas comportamentais visariam promover essas respostas ótimas.

Mas além da adaptabilidade do homo oeconomicus, de seu comportamento racional, calculável a partir do princípio econômico, ele é justamente quem obedece ao seu interesse. É nele, esse sujeito de interesse, que o Estado não deve tocar mas “deixar-fazer” (laissez-faire). E se ele não é “tocável” pelo Estado, no entanto ele é manejável por técnicas comportamentais, o que é o mesmo que dizer que ele é governável, no sentido de que as suas condutas poderão ser conduzidas. Melhor dizendo, o meio a que seu comportamento responderá sofrerá ações sistemáticas por parte do governo: é indiretamente que o Estado alcança os indivíduos através de um poder cuja natureza não é propriamente repressiva mas sim normalizadora. Em suma, o homo oeconomicus é um tipo de sujeito foco de ação de uma arte de governar regulada de acordo com o princípio econômico.

O homo oeconomicus, mesmo ainda não conceitualizado, já aparece na teoria do sujeito do empirismo inglês, que pela primeira vez não o compreende por uma suposta liberdade, por uma oposição da alma ao corpo ou presença de um núcleo de concupiscência marcado pelo pecado. Para o empirismo inglês sujeito é o que aparece como o lugar em que ocorrem as opções individuais intransmissíveis. Por exemplo, a não-dor é preferível à dor. Por que motivo? Porque o sentimento pessoal de dor e de não-dor, do que é doloroso e do que é agradável é que será o princípio de toda opção. Por exemplo, quando me é dado optar entre o corte do meu dedinho e a morte de outrem, nada poderá me forçar a considerar que o corte do meu dedinho seja preferível à morte de outrem. É esse o sujeito: ponto de partida desse tipo de vontade (a que chama de interesse) e instância dotada de sentimento pessoal intransferível.

Para tal sujeito de interesse não existe transcendência. Como crêem os teóricos empiristas e liberais, são forças que ultrapassam os sujeitos – mas não o mundo – que harmonizam seus interesses entre si. O que resulta do encontro harmônico de tais interesses, infinitamente variados e próprios a sujeitos tão diferentes, escapa a todos os envolvidos, é involuntário, indefinível, não-totalizável. É a isso que se refere a expressão "mão invisível" utilizada por Adam Smith, expressão que não quer dizer outra coisa que a mecânica que faz funcionar o homo oeconomicus enquanto sujeito de interesse individual no interior de uma totalidade que escapa a cada sujeito mas que funda a racionalidade das suas opções egoístas.

A mão invisível configura certamente um otimismo econômico. Resto de um pensamento teológico? Lugar vazio secretamente ocupado por um deus providencial? Talvez, pois se por um lado ela é a ideia de que existe uma transparência essencial nesse mundo econômico para um olhar cuja mão ataria os fios de todos os interesses diversos e “dispersos”, por outro a totalidade do processo econômico escaparia a cada um dos sujeitos, aos homens econômicos. Transparência para um olhar que é de ninguém; opacidade da totalidade do processo para os sujeitos envolvidos na vida econômica.

Em resumo, as pessoas, que sem saber porque ou como, seguindo os seus próprios interesses no fim das contas contribuem de forma proveitosa para todos: quando cada um pensa no seu próprio ganho a indústria inteira sai ganhando. Por isso é bom que só se preocupem com os seus próprios interesses, pois, do contrário, quando se preocupam com o bem geral, as coisas não dão certo. O bem coletivo não deve jamais ser visado exatamente porque ele não pode ser calculado: é necessário que cada um dos atores seja cego à totalidade, seja incerto quanto ao resultado no plano coletivo.

Da expressão mão invisível o que geralmente se enfatiza é a “mão” e se deixa de lado o “invisível”. A “mão” é a providência que ataria os fios dispersos; o “invisível” é a não transparência da totalidade do processo que impede que qualquer agente (econômico ou político) particular possa buscar o bem coletivo. O que quer dizer que, um governo, pautado por tais princípios, não deve criar obstáculos aos interesses de cada um, como também ele não deve tentar combinar artificialmente esses mesmos interesses, pelo motivo de que ele não tem sobre o mecanismo econômico um ponto de vista que o totalize. Mão invisível é o nome tanto da combinação espontânea dos interesses que impede toda intervenção artificial quanto da impossibilidade de todo olhar que se pretende totalizante. Todo olhar global não vê mais que quimeras. A economia política denuncia, no séc. XVIII, o paralogismo da totalização política do processo econômico. Por fim, a economia não pode deixar de ter “vistas curtas”. Nenhuma razão é suficientemente ampla para dar conta da totalidade do processo econômico. O mundo econômico é opaco por natureza.

É dessa impossibilidade de totalização que se pode afirmar que a economia é uma disciplina sem Deus. É ela, alíás, que denuncia a impostura de todo olhar pretensamente metasituado, transcendente. Alertando o soberano quanto a qualquer delírio de onipotência/oniciência ao querer exercer sobre o homo oeconomicus um poder que não tem, a economia diz: “tu não deves porque tu não podes; tu não podes porque tu és impotente; tu és impotente porque tu não sabes; tu não sabes porque tu não podes saber”. A economia política, enfim, é uma crítica da razão governamental, uma crítica que marca um limite além do qual todo projeto de uma economia planificada, dirigida, ou toda sorte de socialismos não poderá ultrapassar, pois do contrário não simplesmemte cairá em contradições, mas conduzirá a nação arrogante a um verdadeiro colapso, isto pelo fato de que não é possível existir um soberano econômico. Eis porque o bom governo é aquele que governa com a economia em vez de governar a economia.

Formas de ver

A questão que vem à tona quando estamos diante de trabalhos pictóricos tão diferentes entre si é: mas como vê-los? Postos lado a lado, por exemplo uma pintura acadêmica, figurativa, realista, ao lado de outra pós-impressionista, o que mudou? Da fidelidade aos objetos representados a impressões visuais construídas por meio de cores e formas na composição do que não tem correspondência no “mundo”, terá o objeto mesmo dessas artes se deslocado? Uma maneira possível de compreendermos o que estava em jogo pode ser através do surgimento da fotografia, evento tão marcante para as artes voltadas para o “olho”. Qual foi o papel desse meio técnico de representação do real, que é aparelho da câmera fotográfica, para a história das formas de ver flagrada na mudança das formas de pintar?