quarta-feira, 23 de junho de 2021

A indiferença das coisas

Dois curtos e bastante curiosos trechos em que lemos um drama: a solidão acentuada pela indiferença de objetos inertes. O cenário de ambos é a casa, lugar tornado estranho pelo seu aspecto morto na noite do olhar de quem padece por existir. Angústia e tédio são os dois nomes desse sofrimento diante do vazio. Um trecho se encontra em Madame Bovary, obra de Gustave Flaubert, e começa da seguinte maneira: “Os móveis (...) pareciam ainda mais imóveis”. O outro no Poema Negro de Augusto dos Anjos: “E a impassibilidade da mobília”. Passagem, portanto, do aconchego do lar para a frieza daquilo que é morto no seio mesmo de seu único refúgio contra o mundo, equivocadamente considerado como o “lado de fora”. E nesta fúnebre atmosfera que personagens sofrem o peso do vagar lento do tempo.

“Os móveis, em seus lugares, pareciam ainda mais imóveis e perdiam-se na sombra como num oceano tenebroso. A lareira estava apagada, o relógio continuava a bater e Emma sentia-se vagamente espantada com aquela calma das coisas enquanto nela mesma havia perturbação.”
(Gustave Flaubert, Madame Bovary, p. 149, 150)

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
(Augusto dos Anjos, Poema Negro)

quarta-feira, 31 de março de 2021

Carnaval, política e medo

O espírito subversivo do carnaval se deve ao fato de esta ser uma festa oferecida do povo para si mesmo. O que é vivido durante aquele curto período de tempo não passa pelas autoridades. Meio autêntico de o povo se divertir, certamente, mas sobretudo expurgo de um sentimento latente sob as cinzas da cultura dos povos. A realidade avessada faz dos poderes estabelecidos alvo de escárnios. Semelhante experiência de uma realidade estranhamente invertida é algo excepcional mas que ocorre de tempos em tempos. Mas como seria se o carnaval adquirisse centralidade na consciência dos homens? Ora, não é difícil perceber que é exatamente isto o que ocorre com o advento das redes sociais e das novas tecnologias digitais. Isto explica, em parte, a popularidade (inimaginável nos tempos anteriores ao da era digital e algorítmica) de algumas figuras, especialmente aquelas que se tornam memes. E o efeito disso no campo político não poderia ser diferente. O carnaval tornou-se o paradigma da vida política. Não é à toa que, nos atuais tempos das redes, aqueles homens públicos que “dizem tudo” gozam do status de celebridade. As gafes que comentem e as bobagens que dizem são vistas, antes de tudo, como qualidades humanas, prova de autenticidade e, principalmente, de liberdade (valor absoluto que dizem defender). A imagem de “gente como a gente” com a qual eles se apresentam é uma verdadeira caricatura do homem do povo. E o linguajar que utilizam, e que rebaixa todo o debate público, tanto os distancia da “elite” inimiga quanto mostra que eles não têm o “rabo preso” com o establishment contra o qual afirmam lutar heroicamente. Mas tais “homens do povo” são alçados a posições de destaque na estrutura de poder por meio de mecanismos que eles próprios ignoram e em relação aos quais eles não passam de fantoches. Por trás das aparências desse carnaval populista há o trabalho não só de ideólogos mas de especialistas em Big Data. Na busca pela atenção dos usuários e alimentadas por likes, as redes sociais, através dos algoritmos, acabam por dar maiores destaques àqueles conteúdos que geram maior engajamento. E nessa ânsia das redes por atenção, likes e engajamento, o medo é o afeto chave por sua capacidade mesma de mobilização, do que resulta uma maior facilidade de circulação das fake news e das teorias conspiratórias. Medo, fake news e teorias das conspiração são os lados de um mesmo fator de coesão.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Excedente da razão

Seria a loucura oposta ou negação da razão? Sim se a razão forma uma unidade em relação a qual houvesse uma diferença absoluta de tudo aquilo que não cabe dentro de suas “fronteiras”. Loucura seria, então, o nome dos fenômenos mentais “estranhos”, isto é, fora dos limites do que é considerado razoável. Mas há um problema no núcleo do gesto de uma separação como essa. Que poder seria esse capaz de estabelecer tal limite senão a hipótese de outra razão, superior, que contemplasse tanto a razão quanto a não-razão e definisse as fronteiras entre uma e outra? Ou se tem aqui o deslocamento do problema para uma razão não humana, isto é, de natureza divina – neste caso, a fronteira anterior e mais fundamental àquela que separa a razão da loucura seria a que separasse a “razão superior” da “razão humana” –; ou a “loucura” deve ser incluída na própria razão. Eis, então, como se pode formular essa segunda hipótese: e se a loucura é o próprio excesso da razão e não algo exterior ou anterior a ela? Neste caso, a loucura é um índice de uma contradição da razão consigo mesma, seu excesso inerente. É nisso que consiste a dialética de internalização do conflito: aquilo que se apresenta como outro, como estrangeiro (a "loucura" em relação à "razão"), é, na verdade, a sua outra parte.