sexta-feira, 24 de maio de 2024

Atividade em Spinoza?

O que é a "atividade" em Spinoza? O uso do termo "atividade" em vez de liberdade se dá em razão do fato de que para o filósofo a liberdade não existe se entendida enquanto livre arbítrio. Portanto, um estudo acerca da noção de atividade em Spinoza terá fundamentalmente como objetivo a colocação em xeque da noção de liberdade entendida como livre arbítrio, do que muitas consequências nos mais diversos campos poderão ser extraídas. Por exemplo, no campo político, se liberdade não é escolha, como pensar uma democracia sem partir de uma concepção de liberdade entendida como livre escolha?

Seria um erro dizer que na filosofia de Spinoza não há liberdade. O estudo de sua Ética é de grande importância porque desvincula liberdade de escolhas livres. Existe em sua filosofia, sim, algo como a liberdade. Mas se em Spinoza a livre escolha não existe, isto tanto pode ser em razão de alguma força externa maior que a determina de fora quanto a ausência de uma faculdade que corresponda à liberdade entendida nesses termos. Para o pensador, livre arbítrio é produto da imaginação, isto é, produto do primeiro dos três gêneros que há de conhecimento. Não entraremos nestes outros gêneros porque este não é exatamente o nosso propósito aqui, mas somente no primeiro uma vez que ter clareza de seu funcionamento nos esclarece acerca do porquê que relacionamos com tanta naturalidade liberdade à livre escolha.

É importante afirmar desde já que, segundo Spinoza, aqueles que se encontram submetidos à servidão são justamente os homens cujo modo de pensar se limita ao gênero da imaginação. Iludidos com o livre arbítrio, acreditando serem causa das ações que realizam, tais homens ignoram a verdade de que o que fazem é efeito de causas que lhes escapam o controle. Então, uma primeira aproximação do gênero de conhecimento da imaginação é que ele se caracteriza pela inversão entre causa e efeito. São as forças afetivas que conduzem os homens. Deleuze em Spinoza e os signos fará uma crítica à consciência mostrando de que modo esta é restrita ao gênero de conhecimento da imaginação. A seguir, um trecho da Ética onde isso fica bastante evidente:

A consciência é apenas um sonho, embora com os olhos abertos. "É assim que um menino pequeno julga desejar livremente o leite, um jovem em cólera querer a vingança, e o medroso a fuga. Um homem em estado de embriaguês julga também que diz por uma livre decisão da alma aquilo que, fora dessa situação, preferiria ter calado" (DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Trad. Abílio Ferreira. Porto: Rés Editora, 1970. p. 29.)

O conceito de afecção é outro conceito de extrema importância para quem estuda a filosofia de Spinoza. O que é afecção? Para Spinoza, afecção é o efeito do encontro entre os corpos, isto é, são "as modificações do modo, os efeitos de outros modos sobre si," nas palavras de Gilles Deleuze  (o corpo é o modo do atributo extensão da substância/natureza/deus) (Idem, p. 49.). Se dois corpos se chocam, afecção é o que resulta em cada corpo envolvido no choque, são as marcas que um corpo deixa no outro. Ora, para Spinoza o primeiro gênero do conhecimento resulta desses encontros, ele é produto dessas afecções. Mas a inversão de que falamos própria do conhecimento do gênero da imaginação consiste no procedimento de tomar os efeitos do choque como apartados de suas causas. Eis porque aqueles que pensam no interior deste gênero mais baixo se encontram na servidão: achando que são a origem de suas ações, não se dão conta de que elas são o efeito de forças que estão para além de seu controle.

Como dissemos, as afecções são o que resulta dos encontros entre os corpos. Mas há duas espécies de encontros. Há os bons encontros e os maus encontros. Os bons encontros se caracterizam pelo aumento da potência do corpo, do que resulta em alegria; ao passo que os maus encontros são aqueles que diminuem a potência do corpo, sendo a tristeza o seu resultado. As potências que tanto podem ser aumentadas ou diminuídas dizem respeito à capacidade de agir e de pensar, respectivamente. Em outros termos, um corpo potente e alegre é o corpo com maior capacidade de agir; uma alma potente é aquela com maior capacidade de pensar. Lembrando que, para Spinoza, corpo e alma são, cada um, os dois modos dos dois atributos da substância, o atributo do espaço e o atributo do pensamento.

Aqui chegamos à questão da atividade que indicamos no primeiro parágrafo desse texto. Ultrapassar o gênero do conhecimento da imaginação tem como primeiro passo o reconhecimento de que liberdade não é escolha, já que esta se encontra determinada pelos afetos. Considerar-se livre porque acredita-se que as escolhas feitas foram absolutamente espontâneas, que não resultam de uma causa fora do corpo que realiza a ação, é ignorar o fato de que o indivíduo enquanto corpo está a mercê dos encontros. Estamos falando aqui de uma passividade de todas as ideias da imaginação. Mas falar de liberdade é falar de atividade; falar de atividade é falar de potência, tanto do corpo quanto da alma.

Disso podemos afirmar que a liberdade enquanto atividade (e não enquanto livre escolha) e a potência própria da atividade como o aumento da capacidade de ação dependem dos encontros. A noção imaginária de livre escolha tem como pressuposto um indivíduo isolado de onde todas as suas ações partiriam espontaneamente; já a noção de atividade, para que ela seja possível os encontros felizes se fazem necessários: liberdade depende do outro com o qual meu corpo se encontra e de cujo encontro posso aumentar a minha potência. Eis porque Spinoza é um autor importante para se pensar a questão da coletividade, já que é dela de onde pode provir a liberdade. Por exemplo, a questão das cidades. O que seria uma boa cidade senão aquela que justamente promove e organiza os melhores encontros entre seus cidadão, encontros que potencializam os que habitam nela? Se potência é a capacidade de agir, produzir só é possível a partir dos bons encontros. Cabe aqui uma última citação de Deleuze a respeito da atividade de organizar os bons encontros como meio de aumento da potência.

        Dir-se-á bom (ou livre, ou forte) aquele que se esforça, enquanto persiste em si mesmo, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com as relações combináveis, e, através disso, se esforça por aumentar a sua potência. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer os efeitos, mesmo quando se lamenta e acusa, sempre que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria fraqueza. 


quarta-feira, 23 de junho de 2021

A indiferença das coisas

Dois curtos e bastante curiosos trechos em que lemos um drama: a solidão acentuada pela indiferença de objetos inertes. O cenário de ambos é a casa, lugar tornado estranho pelo seu aspecto morto na noite do olhar de quem padece por existir. Angústia e tédio são os dois nomes desse sofrimento diante do vazio. Um trecho se encontra em Madame Bovary, obra de Gustave Flaubert, e começa da seguinte maneira: “Os móveis (...) pareciam ainda mais imóveis”. O outro no Poema Negro de Augusto dos Anjos: “E a impassibilidade da mobília”. Passagem, portanto, do aconchego do lar para a frieza daquilo que é morto no seio mesmo de seu único refúgio contra o mundo, equivocadamente considerado como o “lado de fora”. E nesta fúnebre atmosfera que personagens sofrem o peso do vagar lento do tempo.

“Os móveis, em seus lugares, pareciam ainda mais imóveis e perdiam-se na sombra como num oceano tenebroso. A lareira estava apagada, o relógio continuava a bater e Emma sentia-se vagamente espantada com aquela calma das coisas enquanto nela mesma havia perturbação.”
(Gustave Flaubert, Madame Bovary, p. 149, 150)

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
(Augusto dos Anjos, Poema Negro)

quarta-feira, 31 de março de 2021

Carnaval, política e medo

O espírito subversivo do carnaval se deve ao fato de esta ser uma festa oferecida do povo para si mesmo. O que é vivido durante aquele curto período de tempo não passa pelas autoridades. Meio autêntico de o povo se divertir, certamente, mas sobretudo expurgo de um sentimento latente sob as cinzas da cultura dos povos. A realidade avessada faz dos poderes estabelecidos alvo de escárnios. Semelhante experiência de uma realidade estranhamente invertida é algo excepcional mas que ocorre de tempos em tempos. Mas como seria se o carnaval adquirisse centralidade na consciência dos homens? Ora, não é difícil perceber que é exatamente isto o que ocorre com o advento das redes sociais e das novas tecnologias digitais. Isto explica, em parte, a popularidade (inimaginável nos tempos anteriores ao da era digital e algorítmica) de algumas figuras, especialmente aquelas que se tornam memes. E o efeito disso no campo político não poderia ser diferente. O carnaval tornou-se o paradigma da vida política. Não é à toa que, nos atuais tempos das redes, aqueles homens públicos que “dizem tudo” gozam do status de celebridade. As gafes que comentem e as bobagens que dizem são vistas, antes de tudo, como qualidades humanas, prova de autenticidade e, principalmente, de liberdade (valor absoluto que dizem defender). A imagem de “gente como a gente” com a qual eles se apresentam é uma verdadeira caricatura do homem do povo. E o linguajar que utilizam, e que rebaixa todo o debate público, tanto os distancia da “elite” inimiga quanto mostra que eles não têm o “rabo preso” com o establishment contra o qual afirmam lutar heroicamente. Mas tais “homens do povo” são alçados a posições de destaque na estrutura de poder por meio de mecanismos que eles próprios ignoram e em relação aos quais eles não passam de fantoches. Por trás das aparências desse carnaval populista há o trabalho não só de ideólogos mas de especialistas em Big Data. Na busca pela atenção dos usuários e alimentadas por likes, as redes sociais, através dos algoritmos, acabam por dar maiores destaques àqueles conteúdos que geram maior engajamento. E nessa ânsia das redes por atenção, likes e engajamento, o medo é o afeto chave por sua capacidade mesma de mobilização, do que resulta uma maior facilidade de circulação das fake news e das teorias conspiratórias. Medo, fake news e teorias das conspiração são os lados de um mesmo fator de coesão.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Excedente da razão

Seria a loucura oposta ou negação da razão? Sim se a razão forma uma unidade em relação a qual houvesse uma diferença absoluta de tudo aquilo que não cabe dentro de suas “fronteiras”. Loucura seria, então, o nome dos fenômenos mentais “estranhos”, isto é, fora dos limites do que é considerado razoável. Mas há um problema no núcleo do gesto de uma separação como essa. Que poder seria esse capaz de estabelecer tal limite senão a hipótese de outra razão, superior, que contemplasse tanto a razão quanto a não-razão e definisse as fronteiras entre uma e outra? Ou se tem aqui o deslocamento do problema para uma razão não humana, isto é, de natureza divina – neste caso, a fronteira anterior e mais fundamental àquela que separa a razão da loucura seria a que separasse a “razão superior” da “razão humana” –; ou a “loucura” deve ser incluída na própria razão. Eis, então, como se pode formular essa segunda hipótese: e se a loucura é o próprio excesso da razão e não algo exterior ou anterior a ela? Neste caso, a loucura é um índice de uma contradição da razão consigo mesma, seu excesso inerente. É nisso que consiste a dialética de internalização do conflito: aquilo que se apresenta como outro, como estrangeiro (a "loucura" em relação à "razão"), é, na verdade, a sua outra parte.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Hierarquia ontológica do campo sonoro

Contrariamente ao que se imagina, o silêncio não é anterior ao som e, menos ainda, ao ruído. Na hierarquia própria à realidade sonora, o ruído é anterior ao som e este, ao silêncio. Na ordem ontológica desse campo, o ruído é primeiro, é manifestação espontânea, ao passo que o som só pode vir depois por ser o ruído trabalhado. Por fim, o silêncio. Se a música é a maior de todas as artes, a conquista do silêncio é o maior de todos os feitos. Parafraseando o verso bíblico, “no princípio era o ruído”, e eis que (por alguma intervenção) se fez o som. Mas interessa mesmo é o passo seguinte: o silêncio. “O mundo é um mar de ruídos com pequenas ilhas de som”, dirá um poeta ainda por nascer. Quanto ao silêncio, este resulta de árduos exercícios de distanciamento desse conjunto de coisas que chamam de mundo. E conquistar esse mundo é fácil. Desafio mesmo é saber fazer silêncio.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Do Diabo para o músico gênio

Na fala do Diabo para o músico gênio, a fadiga e a reflexão crítica se mostram ser aquilo que estaciona o verdadeiro trabalho no campo das artes.

"O artista é irmão do criminoso e do demente. Pensas, por acaso, que já se haja realizado alguma obra interessante sem que seu autor tivesse aprendido a entender a existência de loucos e malfeitores? Que significa "mórbido" e "sadio"? A vida nunca logrou em dispensar o mórbido. Tiramos as coisas boas do nariz do Nada? Onde nada existe, o próprio Diabo não terá campo. Nós não criamos novidades. Limitamo-nos a desatar e libertar. Mandamos às favas a lerdeza, a timidez, os castos escrúpulos e as dúvidas. Estimulamos, e mediante a excitação produzida por um pouquinho de hiperemia, já suprimimos a fadiga, a pequena e a grande, a particular e a inerente à época. O que na era clássica talvez se pudesse obter sem a nossa intervenção, hoje em dia somente nós podemos oferecer. E nós oferecemos coisa melhor, unicamente nós oferecemos o autêntico e o verdadeiro. O que nós propiciamos já não é o clássico, meu caro, e sim o arcaico, o primordial, o que, desde tempos imemoriais, ninguém experimentou. Quem sabe ainda hoje, quem sabia até mesmo na época clássica o que é inspiração, o velho gênio criador autêntico, primevo, não deteriorado pela lerda ponderação, pelo mortífero controle do intelecto, o sagrado transe? O que ele, o diabo, deseja e proporciona é justamente a triunfante superação dela, através da ostentosa irreflexão."
(Thomas Mann - Doutor Fausto, p. 276 e 277)

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A experiência, a boa fé e a metafísica segundo François Châtelet


1 - Doxa    

    Num diálogo com um marxismo francês da década de 1960 e em defesa da filosofia, François Châtelet, em seu livro Logos e Praxis, faz uma interessante exposição sobre a oposição entre as duas noções gregas de logos e doxa com a finalidade de responder a seguinte questão: “que é, para o filósofo, a prova filosófica, e por que a procura? Essa procura corresponde realmente à vontade filosófica tal qual se manifesta desde Platão? A que tipo de prova chega então o filósofo?” (CHÂTELET, 1972. p. 87) Defenderá o autor que o projeto filosófico é estabelecer um enunciado integralmente legitimado. Essa resposta se difere de outra possível tese sobre o que seria a prática filosófica, segundo a qual ela é o esforço de sistematização de uma visão de mundo. Mas que projeto seria esse da filosofia de estabelecer um enunciado integralmente legitimado? Logos e doxa são os termos chave e de difícil tradução que permitem compreender esse projeto. Este último, Doxa, pode ser entendido, embora não sem algum inconveniente, como senso comum, bom senso, opinião. Mas, mais exatamente, doxa é

(...) um sistema de crenças manifestando-se na prática, na conduta, nos sentimentos e nas falas, crenças tais que, quem as possui nada mais deseja, e pensa, graças a elas, que atinge necessariamente a satisfação em todos os domínios: êxito na ação, felicidade na alma e justeza no julgamento. (CHÂTELET, 1972. p. 89)

    O homem da doxa não é acometido por dúvidas, por isso não problematiza o que quer que se lhe apresente. Se o “saber” que traz consigo é verdadeiro ou falso, pouco lhe importa; importa, antes, é se o que foi transmitido a ele lhe permite orientar-se na vida. Ele não submete o que “sabe” a nenhuma espécie de especulação crítica que pudesse, por um breve instante que seja, levantar alguma desconfiança quanto aos seus fundamentos. O que sabe já lhe basta. E sua atitude de desprezo diante de outros saberes e modos de existência diferentes dos dele se explica pelo seu estado de certeza imediata. “A doxa não formula questões: constitui antes uma coleção de respostas.” (CHÂTELET, 1972. p. 90)
    Partindo do princípio de que o surgimento da filosofia não foi propriamente um “milagre”, o contexto histórico de que resulta essa modalidade de pensamento não pode deixar de ser considerado. O que levou os primeiros pensadores gregos a inaugurarem o que depois veio a se chamar filosofia deve ser remetido ao desenvolvimento de novas técnicas artesanais e ao contato que os gregos tiveram com diferentes povos. Não há transformação de mentalidade que não seja consequência de transformações das condições de existência. Essa referência ao solo histórico permite perceber que nenhuma sociedade pode, por um período de tempo indeterminado, viver fechada no interior de si própria, reproduzindo indefinidamente os mesmos modos de vida e as mesmas relações com o que é externo a elas. E essas transformações materiais apontam para uma quebra de certezas determinante para o desenvolvimento da filosofia. Esta constituiu o esforço de oferecer uma resposta ao abalo dos fundamentos que sustentavam aquela cultura e aquela sociedade. A existência em sua dimensão histórica mais traumática talvez force os homens a pensar. Tendo se descortinado a eles um outro mundo e inaugurado um novo tempo, a filosofia nasce desse trabalho de reconstrução dos fundamentos que haviam sido perdidos com o esvaziamento das crenças tradicionais, dos mitos.

Essas cidades [gregas] criaram colônias que logo conquistaram a independência e fazem agora circular um novo espírito. É preciso elaborar todo um urbanismo, construir cidades, instituir constituições, e o pensamento tradicional está sendo submetido a duras provas. Para essas colônias, a tradição não basta mais. Esse espírito remonta até o centro; e, já no século VI, todas essas cidades são varridas por um vento de renovação. (CHÂTELET, 1995, p. 16)

    Os tempos de incertezas nos quais as antigas sabedorias não cumprem mais a função estabilizadora de antes fazem surgir um conflito ao mesmo tempo inédito e prático: o destino da polis. “A cidade de Péricles tornar-se-á o lugar de disputas apaixonadas em que se manifestam as diferentes doxoi.” (CHÂTELET, 1972. p. 92) E é nos diálogos em que se manifesta tal confronto, uma luta de interesses cujo vencedor é aquele que melhor argumenta. Por se tratar de uma disputa e não de uma troca, não é a verdade o que visa tal confronto verbal mas o convencimento. Mesmo que a falência do discurso mítico pudesse conduzir à oposição entre verdade e erro, isto não quer dizer que o homem da doxa em algum momento possa lançar sobre o que diz alguma reflexão crítica. Não duvidando de si, a “verdade” que o homem da doxa diz não admite outra diferente dela.

Para-si, cada uma das doxas se apresenta como verdade: qual, no entanto, dessas opiniões, é posse efetiva do verdadeiro? (...) – cada opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe dão razão. (CHÂTELET, 1972. p. 94)

Não sendo possível que uma doxa se imponha a outra senão pela via da persuasão, resta à linguagem a função de instrumento de convencimento, de arma retórica, e se todo e qualquer apelo à experiência tem alguma eficácia enquanto prova do que se diz é porque a própria linguagem do orador determina os sentidos dessa experiência. Para dizer de outro modo, se a experiência não serve de prova para o discurso verdadeiro ou de desmentido para o falso, sendo ela própria dependente da habilidade do orador, é porque ela está no campo da doxa, sujeita às forças resistentes dos esforços de se estabelecer os fundamentos da certeza.

Os acontecimentos, com efeito, dão sucessivamente razão a cada uma das partes conflitantes e, no conflito que opõe a tradição ao progresso, a agricultura ao comércio e ao artesanato, a oligarquia à democracia, a natureza à história, a ordem dada à justiça desejada, Aristófanes a Hipérboles e a Cleon, Sparta a Atenas – esse acúmulo indicando a riqueza do problema e de modo algum a pretensão de esgotá-lo – cada opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe dão razão. (CHÂTELET, 1972. p. 94)

    A experiência, portanto, não confirma e tampouco contradiz o que quer que seja por estar ela própria sob as determinações discursivas. O uso habilidoso da palavra com a capacidade de dobrar o público que escuta, de fazê-lo acatar o que é dito e experimentar os acontecimentos de acordo e a partir de interesses particulares, só é possível porque um discurso proferido traz uma visão de mundo que retroativamente lhe dá suas “razões”. E os sentidos que a experiência adquire resultam de um jogo retórico. Eis o motivo pelo qual a experiência, de suposta evidência, não poderia ser fonte de certeza.
    Se a habilidade dos homens da doxa, ao defenderem os seus interesses e suas paixões, consiste em ter fortes argumentos e em apelar para exemplos no campo da experiência que confirmam o que dizem ou que negam o que o outro diz, então, contra eles, só a violência. Ou seja, o limite do discurso da doxa, lá onde ele se revela frágil, é quando “esbarra” com a única força capaz de constrangê-lo, que é a violência. Ora, se apenas a força da violência, e não a evidência da verdade, pode ser maior que o jogo da doxa, isto significa que “nada entrou no lugar da antiga certeza.” (CHÂTELET, 1972. p. 96) No que diz respeito à determinação dos acontecimentos, a realidade se revela à mercê de forças que escapam a toda necessidade. O surgimento da filosofia, ao se contrapor à doxa, tem essa circunstância de contingência radical e absoluta como pano de fundo e “representa a vontade corajosa de sair dessa situação insustentável e de restituir ao homem a esperança de assistir ao êxito duradouro de uma ação sensata.” (CHÂTELET, 1972. p. 96) Porque a filosofia não é uma doxa entre outras, ela não poderia jamais tomar partido remetendo-se a esse ou aquele exemplo sustentado na experiência.

Contra as doxoi, invocando cada uma o testamento de um elemento desse horizonte único, o filósofo invoca o horizonte em seu conjunto; mais precisamente, na medida em que o invoca em seu conjunto e que esse conjunto é contraditório, mostra o absurdo do recurso ao que se costuma chamar de experiência, pois cada um pode nela encontrar o exemplo que legitima sua crença. (CHÂTELET, 1972. p. 97)

    Ao absurdo que a realidade histórica representa e que se impõe aos gregos, a filosofia pretende ser a resposta. Para isso, como parte desse esforço de escapar das parcialidades próprias da doxa, teve de excluir a dimensão da experiência, pois as interpretações que atribuem sentido a ela, por serem dependentes das paixões, afastam os homens da justeza e da felicidade.
    A utilização da linguagem pelos homens se revela ser o único fato comum entre eles. Não obstante estarem distantes das coisas tais como são e sem poderem contar com a experiência como via de acesso certo e garantido à realidade, sentem a necessidade de construir um caminho seguro através da elaboração do discurso coerente. O primeiro passo desse gesto que os conduziria à universalidade é separar, colocando num só grupo, tanto os discursos e falas que se contradizem entre si, pela parcialidade a que estão entregues e que representam, quanto a experiência igualmente parcial, limitada, aparente.
    O termo que aponta para aquilo que poderia restituir a confiança e certeza, em oposição à doxa, é logos. A busca pela verdade de algo para escapar das visões parciais ocorre através da construção do conceito sustentado na razão.

2 - Logos 

    O termo logos possui três significações, como Châtelet coloca. Inicialmente, é toda palavra cuja função é designar as coisas. Nesse primeiro sentido, meramente declarativo, ainda não existe a questão da justeza ou da adequação no que diz respeito à sua função de se referir às coisas no mundo: a palavra não é nada além do nome daquilo a que ela se refere. Em seguida, logos é discurso, é argumentação, “conjunto, com sentido, de palavras com sentido” (CHÂTELET, 1995, p. 25). Ou seja, é a fala que não se satisfaz apenas em dizer mas que se justifica perante outras falas, uma vez que também há outras falas que igualmente querem se impor. Ora, de que modo o logos, nesse segundo sentido, poderia, no embate com as doxas, se apresentar como verdadeiro e não como um discurso entre outros? Somo aqui conduzido ao terceiro sentido do termo logos: razão. Razão é isso que se encontra nos indivíduos que permite a eles combinarem as palavras de modo tal que um sentido demonstrável pode ser obtido. É essa boa ligação de palavras e frases que confere ao discurso o poder de dizer a verdade, de dizer as coisas como são na sua independência das mesquinharias mundanas e dos interesses parciais. Desse caráter desinteressado do discurso filosófico provém o poder de “suscitar a adesão do homem”, libertando-o ao que é verdadeiro. O filósofo, por acessar a razão, é “aquele que sabe formular as questões e dar as respostas convenientes.” (CHÂTELET, 1972, p. 100)
    Os discursos da doxa são generalizantes, como a filosofia. No entanto, diferentemente desta, não se fundamentam na universalidade da razão, motivo pelo qual sua pretensão não poderia ter legitimidade. As “palavras” de que se utiliza o discurso filosófico têm “consistência e solidez” por se tratarem, como implicado no sentido de logos, de conceitos. Fazer da palavra um conceito é eliminar dela as sombras de parcialidade – e, por extensão, de ambiguidade – para garantir a ela a efetividade do dizer, o poder de representar a verdade do que se diga. A palavra-conceito retira o mundo do âmbito do desejo daquele que discursa, pois ela não é a palavra deste ou daquele homem particular, mas “conhecimento do que é”. E isto implica, repetindo, a retirada da experiência do âmbito do que é evidente e que poderia servir como prova, retira qualquer possibilidade sua de ser a confirmação do que quer que seja, pelo motivo de que está sujeita aos interesses e paixões.
    O logos, enquanto “o domínio no qual se constrói o enunciado verdadeiro” (CHÂTELET, 1972, p. 101), só é efetivo se da parte do interlocutor houver boa fé. Ou seja, a boa vontade requisitada daquele com quem se estabelece o diálogo na busca pela verdade é o outro lado de que se necessita para que o sentido da verdade se complete. Esperar que o interlocutor seja alguém de boa fé, que tenha boa vontade para com a verdade, é contar com o fato de que ele, homem da doxa, estaria disposto a abrir mão de suas paixões e acatar a palavra que se impõe unicamente pela força da verdade que carrega. Mas sem esse consentimento de base daquele com quem se dialoga, o filósofo se vê desarmado. Não basta a fala coerente, mas que a exigência de coerência seja aceita pelo outro. E, além disso, que a verdade seja preferível à paixão. “O filósofo socrático realiza seu propósito sempre que a doxa aceita a filosofia.” (CHÂTELET, 1972, p. 101) Não haveria, portanto, um problema já na origem do projeto da filosofia, que, para que ele seja possível, todos os envolvidos no debate filosófico já compartilhem dos pressupostos do filósofo?
    A morte de Sócrates aponta para algo difícil de ser aceito: talvez a paixão seja preferível à verdade. Reinando a doxa, é a incoerência e as realidades mais imediatas e fugidias que ditam as regras. Ou, dito de outro modo, todo esforço de fundamentar as regras que regulem as relações entre os homens pautado em conceitos, por exemplo no conceito de justiça, ou de promover entre eles a verdadeira satisfação, por exemplo no conceito de felicidade, não terá êxito, pois o debate está sequestrado pelos interesses parciais. A cidade, então, se revela ser um lugar muito pouco seguro para o filósofo. Eis o problema no coração do projeto da filosofia:

(...) para que o filósofo viva, é preciso que a justiça reine; mas, para que isto seja possível é necessário que os homens acreditem na filosofia, que já sejam filósofos; ora, se assim fosse, a justiça já reinaria. Ou ainda: o discurso coerente, capaz de promover a boa ordem, o que garante a segurança do filósofo, não pode só ser ouvido num mundo no qual o filósofo, porque nele se acredita, já tem sua segurança garantida. Na Cidade injusta, a pedagogia filosófica é ineficaz: aos que são dominados pela paixão apresenta-se como um jogo estéril ou um disfarce do interesse. E não há meios, pelo discurso, de romper o reino da violência que se engendra a si mesma. (CHÂTELET, 1972, p. 104)

Referência Bibliográfica:
- CHÂTELET, François. Logos e Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.