sábado, 22 de agosto de 2009

Lolita

A escrita do livro mais conhecido de Vladimir Nabokov, Lolita, me causou certo espanto pela sua capacidade de penetrar em certas obscuridades. Isto a que o livro se refere,  o fascínio de um homem de meia idade por uma garota de doze anos, toca a leitor de modo especial, fazendo com que a sua sensibilidade ganhe proporções artísticas, o que o leva a reconhecer certa superioridade da arte em relação à moral e à lei. Se o livro foi proibido nos EUA é porque a censura limitou-se à estória contada e não soube reconhecer o valor da obra como um grande feito de linguagem. A que categoria pertence o objeto do amor de Humbert? A das ninfetas. E Lolita é o mais puro exemplar dessa espécie, um “puro sangue”, diria. É preciso atentar-se às metáforas usadas e o "lugar" sagrado delas, que não é espacial. Em sua ilha de tempo, reúnem elas a contradição: são crianças e putas, que vivem a infância e passeiam em espírito pelas regiões do erótico, exalando prazer como um perfume embalsamando um ambiente. A felicidade delas é com o tempo presente. Futuro elas não têm, pois vivem pouco. Talvez Humbert quis beber nelas um pouco de juventude e, com isso, quem sabe driblar a irreversibilidade do tempo, sentir-se eterno durante os instantes de sua contemplação.

“Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza — que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares proponho dar o nome de 'ninfetas'. O leitor terá notado que substituo a noção de espaço pela de tempo. De fato, gostaria que ele visse 'nove' e 'catorze' como pontos extremos — as praias refulgentes e os róseos rochedos — de uma ilha encantada onde vagam essas minhas ninfetas cercadas pelas brumas de vasto oceano. Será que todas as meninas entre esses limites de idade são ninfetas? Claro que não. Se assim fosse, nós que conhecemos o mapa do tesouro, que somos viajantes solitários, os ninfoleptos, teríamos há muito enlouquecido. Tampouco a beleza serve como critério; e a vulgaridade, ou pelo menos aquilo que determinados grupos sociais entendem como tal, não é necessariamente incompatível com certas características misteriosas, a graça preternatural, o charme imponderável, volúvel, insidioso e perturbador que distingue a ninfeta das meninas de sua idade, as quais, incomparavelmente mais sujeitas ao mundo concreto dos fenômenos que se medem com relógios, não têm acesso àquela intangível ilha de tempo mágico onde Lolita Brinca com suas companheiras. Dentro dos mesmos limites de idade, o número de genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem atrativos, ou apenas “bonitinhas” e até mesmo “adoráveis”, que são criaturas essencialmente humanas — comuns, rechonchudas, informes, de pele fria e barriguinha proeminente, usando tranças —, capazes ou não de transformarem-se em mulheres de grande beleza (basta ver aquelas garotas gordotas, de meias pretas e chapéus brancos, que se metamorfoseiam em estonteantes estrelas de cinema). Confrontado com a fotografia de um grupo de escolares ou escoteiras e solicitado a apontar a mais bonita entre elas, um homem normal não escolherá necessariamente a ninfeta. É necessário ser um artista ou um louco, um indivíduo infinitamente melancólico, com uma bolha de veneno queimando–lhe as entranhas e uma chama supervoluptuosa ardendo eternamente em sua flexível espinha, afim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis — a curva ligeiramente felina de uma maça do rosto, uma perna graciosa coberta de fina penugem, e outros indícios que o desespero, a vergonha e lagrimas de ternura me impedem de enumerar —, o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. Elas não a reconhecem como tal, e a própria ninfeta não tem consciência de seu fantástico poder." (Lolita, Vladimir Nabokov, Pp. 18 e 19)

sábado, 8 de agosto de 2009

O lamento das coisas

Em O Lamento das Coisas, de Augusto dos Anjos, o poeta se coloca à escuta de tudo o que não é aproveitado, de tudo o que se perde. E dessa “energia” desperdiçada ouve-se um choro. Vidas que se perdem pelo fato mesmo de nascerem, riquezas que somem na promiscuidade esplêndida das moléculas: bem ou mal aproveitados os talentos, a natureza é indiferente a qualquer um deles. Em outro lugar, refere-se à natureza como “Semeadora de defuntos”. Não seriam os seus versos o "lamento" de quem ou do que irá se perder para nunca mais? De um ateísmo mórbido, são com os sagrados termos das ciências que os Anjos de Augusto fazem as suas preces. A religião profana que congrega tem em seu livro santo o Apocalipse no lugar do livro de Gênesis.


O lamento das coisas

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!