O MUNDO não é simplesmente marcado pelas revoluções, mas é antes de tudo refeito por elas. A revolução política no final do século XVIII decapitou o rei. E junto com ele, Deus. Mas também se pode dizer que o que ocorreu foi o inverso: quando Deus se tornou prescindível, o rei dispensável. A história doravante foi a sucessão de malogros das tentativas de sua reestruturação impossível. Como fazer as coisas sem uma garantia ontológica como a que havia antes? Eis o tipo de problema que aparece. Enquanto que as ordens cósmicas e humanas se pautavam pelos fins, pelo objetivo em direção ao qual todas as coisas naturalmente tendiam, agora é o indefinido. Com isso, a natureza do tempo foi modificada quando dele se retirou as finalidades que o absoluto conferia, finalidades como a salvação da alma, o último império governado por Cristo, o fim da sucessão do tempo e do movimento do devir. Sem o estático como promessa, o tempo torna-se cego. Chama-se de modernidade este novo mundo sem Deus, mundo para o qual idéias como de “fim da história” ou de anulação dos acontecimentos são uma fábula. No campo da economia, relembrando Marx, o reflexo do que foi dito acerca dos fins que deixaram de existir aparece na famosa inversão efetuada pelo surgimento do capital. M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria) é substituído por D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro). A mercadoria era o fim do dinheiro, objetivo último que cessava o movimento da troca pela sua realização e satisfação dos envolvidos. Só para lembrar, dinheiro é o trabalho acumulado numa forma material. Todo trabalho visava algo outro que o próprio trabalho, que eram as mercadorias. Depois da substituição, quando o fim torna-se o trabalho e as mercadorias nada mais que o meio, entra-se na era do capital, a era da ausência dos fins, não havendo mais o “repouso” que a mercadoria representava no processo da troca. A finalidade do dinheiro é o próprio dinheiro. No campo das artes, o índice desse desaparecimento se manisfesta das mais variadas formas, por exemplo a que foi exposta no texto postado anteriormente (“O piano de Rebecca Horn”) em que o deslocamento do objeto equivale a retirada de sua função, adquirindo ele desta maneira valor de arte. Na pintura, isso se dá quando a representação fiel da coisa a ser representada deixa de ser o fim almejado, permitindo o surgimento de estilos que nada dependem da existência anterior – e exterior – de um mundo, mas antes o criam: tanto as novas estéticas são formas novas de ver como cada gênio criador de um estilo artístico não deixa de ser uma espécie de deus secular. Na literatura, por exemplo a de Edgar Allan Poe, para ficar com apenas um exemplo, o poema O corvo que repete o refrão “nunca mais” lembra o homem solitário que a já falecida Lenora não terá mais com ele em mundo algum justamente por não existir outro além desse em que as coisas perecem; ou o curto conto Homem na multidão, em que um transeunte escolhido ao acaso anda sem chegar a nenhum lugar ao mesmo tempo que é seguido pelo narrador, cuja forte impressão em razão desta falta de um lugar a que chegar é transmitida ao leitor. E o que dizer do desejo? O que se quer quando se deseja em uma época sem as finalidades de antes, sem os objetivos da satisfação? Ora, sem tal fim, o desejo torna-se circular. A psicanálise foi a maneira criada por Freud de dar inteligibilidade a essa circularidade, ao desejo que não deseja nada além de si mesmo, que quer continuar desejando. Numa piada um pouco sem graça, a pulsão sexual como o nome desta circularidade nos é mostrada com o máximo de clareza no não entendimento de sua estrutura por parte do idiota:
“Ao idiota que pela primeira vez estava tendo uma relação sexual, a garota sua parceira diz:
- Está vendo o buraco entre as minhas pernas? Meta aí dentro. Agora enfie bem fundo. Agora puxe para fora. Para dentro, para fora, para dentro, para fora...
- Espere aí! – interrompe o idiota. – Decida-se! Para dentro ou para fora?”