domingo, 5 de setembro de 2010

A treva, o tempo que se dissipa, o silêncio puro


NO Centro Cultural do Correios, no centro do Rio de Janeiro, tive a chance de ver trabalhos do xilogravurista, ilustrador e desenhista Oswaldo Goeldi. Eu já conhecia uma coisa e outra através de algumas ilustrações de livros que ele fez, como um de Gustavo Corção e outro de Dostoievsky que tenho em casa. A minha atitude em relação ao que via não foi diferente da que tive em casa lendo Lições de Abismo ou as novelas do escritor russo senão pelo fato de vê-las à minha frente, de pertinho, estando eu na mesma posição e distância do artista enquanto as criava. Mas isso é pouco ou mesmo nada relevante: o alcance de uma obra não acontece por uma proximidade dessa natureza. Se fosse isso verdade, os turistas japoneses que vão ao Louvre tirar foto da Monalisa seriam especialistas em pintura renascentista. Diante do que se me apresentava, a minha atitude, como em outras ocasiões, era incerta, profundamente marcada pela dúvida de como ver o que via, pela indecisão na maneira de me portar, se devia ter uma atitude ativa, por exemplo tentar relacionar os quadros à história da arte e principalmente da estética, ou talvez passiva, apreciar simplesmente, sem intelectualizar. Falso dilema esse em que eu me colocava. Definiria a situação como a de uma cegueira que me impedia de “ver” aquelas obras provenientes de um trabalho de criação. O momento marcante que liberou a experiência se deu com o encontro da poesia de Carlos Drummond de Andrade escrito em letras coladas na parede de um dos salões da exposição. Uma luz especial fora lançada por sobre todas as salas, iluminando, fazendo resplandecer em cada quadro uma realidade para mim ainda virgem, permitindo surgir das superfícies escuras um mundo novo, o daquele artista incompreendido até o meu decisivo encontro com o verbo. Não os classificava, pois o poema em questão não me fornecia conceitos à luz dos quais interpretar “melhor” Goeldi. Não é disso que se trata. Tampouco me dizia para relaxar e não pensar em nada, mas apenas curtir os desenhos. Repletas de um pensamento de espécie singular, as palavras de Drummond recortavam determinados traços das figuras, davam-lhes vida ao mesmo tempo que lhes davam voz. Mas seria isso uma espécie de subordinação do olho, da visão e da imagem em geral à palavra? Logo, seriam as artes plásticas uma arte menor, ela mesma refém de uma outra forma de expressão, como a poesia? Ou, que privilégio seria esse da palavra em relação ao que se vê? A resposta é negativa e não existe privilégio de uma coisa sobre a outra. O que ocorre é que a experiência passa por determinados crivos que podemos chamar de código, sendo a poesia justamente a arte por excelência de intervenção de sua estrutura. Portanto, com maior nitidez que nas fotografias, a realidade agora destacada que os quadrados emoldurados pendurados à parede apresentavam me sugeria um respeito ao que desde meu nascimento até o momento daquela descoberta eu certamente me manteria afastado: a treva e o tempo que se dissipa constituintes de um ambiente de silêncio puro, cenário predileto das criaturas portadoras de outra moral, estes mesmos seres que se desdobram na realização de misteriosos empenhos, por vezes até cruéis quando vistos pelos impregnantes ângulos ensinados por nossos educadores. Vamos às palavras de Drummond!

A Goeldi
De uma cidade vulturina
vieste a nós, trazendo
o ar de suas avenidas de assombro
onde vagabundos peixes esqueletos
rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis,
mas entupidas de tua coleção de segredos,
Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

Ainda não desembarcaste de todo
e não desembarcarás nunca.
Exílio e memória porejam das madeiras
em que inflexivelmente penetras para extrair
o vitríolo das criaturas
condenadas ao mundo.

És metade sombra ou todo sombra?
Tuas relações com a luz como se tecem?
Amarias talvez, preto no preto,
fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã,
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Estás sempre inspecionando
as nuvens e a direção dos ciclones.
Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo
são elementos de teu reino
onde a morte de guarda-chuva
comanda
poças de solidão, entre urubus.

Tão solitário, Goeldi! mas pressinto
no Glauco reflexo furtivo
que lambe a canoa de teu pescador
e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus negrumes
uma dádiva de ti à vida.

Não sinistra
mas violenta
e meiga,
destas cores compõem-se a rosa em teu louvor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1958)


2 comentários:

  1. Olá! Gostei do texto, da poesia e me identifiquei com esse sentimento que teve diante da exposição. Muito legal!

    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. Imaginei que vc já tivesse ido ver. Gostei muito do que vi.
    Um abração!!!

    ResponderExcluir