NO DIA 1º de março do ano passado postei neste blog um texto cujo título era "Imobilidade e indiferença do que já é morto" (link do texto). A motivação para trazê-lo à luz foi a recorrência de descrições de certas cenas em autores de diferentes nacionalidades e estilos. Gustave Flaubert e Augusto dos Anjos nos mostram o estranho no interior mesmo da casa, fazendo do espaço íntimo do lar algo ameaçador, hostil como o "lado de fora": numa imobilidade atordoante seus objetos se revelam indiferentes à dor de quem é vivo. Em O espelho, conto de Machado de Assis, há também essa espécie de revolta das coisas da casa em relação àquele que nela habita: contra o homem da consciência, o relógio da sala de movimento automático explana o vazio. A sua pêndula, de marcadora da hora à anunciadora de um mal que corroe, ao "piparote contínuo da eternidade"; o "diálogo do abismo"; "cochicho do nada". Resulta disso a mortificação de um homem entregue à solidão: "defunto andando, (...) boneco mecânico". A saída para o mal que o subtrai por dentro, para o silêncio que dissolve a fronteira imaginária que separa e distingue o interior do exterior, o dentro e o fora, o eu e as coisas, foi a criação de um duplo. A presença de sua imagem refletida com a vestimenta de sua profissão de Alferes mais do que lhe oferecer conforto torna-o imune à loucura para onde a atmosfera de silêncio e a mudez das coisas o arrastavam.
Relendo a primeira parte de Em busca do tempo perdido pude encontrar um trecho semelhante aos de Flaubert, Augusto dos Anjos e Machado de Assis. Diferentemente deles, Proust parece saborear a oquidão de seu quarto na madrugada. Longe de ver nos objetos inanimados o seu contraponto morto, à insensibilidades deles o personagem se entrega, gozando do privilégio da indiferença.
"Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão por um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos orgânicos das madeiras, para abrir os olhos e fixar no caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me."
(Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 21)
Relendo a primeira parte de Em busca do tempo perdido pude encontrar um trecho semelhante aos de Flaubert, Augusto dos Anjos e Machado de Assis. Diferentemente deles, Proust parece saborear a oquidão de seu quarto na madrugada. Longe de ver nos objetos inanimados o seu contraponto morto, à insensibilidades deles o personagem se entrega, gozando do privilégio da indiferença.
(Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 21)