sábado, 5 de fevereiro de 2011

"Pôr" e "Estar"

NO CONHECIDO poema de Vicente de Carvalho Velho Tema I, os dois último versos, mais precisamente o último, o autor é cuidadoso na ordem da colocação dos termos. Uma simples mudança de lugar, de troca entre duas palavras, comprometeria o que nele há de mais essencial: a atividade no lugar do acaso sugerida pela palavra 'pomos' antes da 'estamos'. Acerca da árvore da felicidade, no penúltimo verso lemos "Porque está sempre apenas onde a pomos", e no último "E nunca a pomos onde nós estamos." Tanto num quanto noutro aparece o termo "pomos". E é exatamente no último onde se percebe a idéia de uma atividade da pessoa do poema, daquele que sofre, justamente pela precedência do termo pomos em relação ao termo estamos. Primeiro pomos; depois estamos. Eis o que nos é dito. Mas capaz de rebaixar o poema de Vicente de Carvalho seria a inversão destes termos. Para falar da felicidade, imaginemos o último verso com a seguinte seqüência: "E nunca estamos onde nós a pomos." Essa segunda possibilidade enfraqueceria o que se acompanha ao longo da leitura pela simples razão do aparecimento na frase de "estamos" antes de "pomos". Semelhante ordem dos termos (estar antes do pôr) implica em determinadas coisas. Primeiro estamos; depois pomos. O pôr apareceria submetido ao estar, à sua mercê, o que privilegiaria o contingente de uma situação de estar em detrimento do ato de pôr, da atividade que nos é própria. O caráter livre tanto da pessoa do poema quanto de quem o escreveu e de quem o lê ganha assim contornos e se sobrepõe ao acaso do simplesmente estar, situação de absoluta dependência de "forças" que escapam à ação do sujeito, nos isentando com isso de qualquer responsabilidade em relação ao que somos, e o que somos pode ser medido pela distância entre o que (e onde) pomos isto que pomos e o lugar onde estamos, que na verdade resulta de nosso gesto primeiro de pôr.


Hoje parece haver uma preferência pelo estar em detrimento do pôr. Fim do homem, do sujeito enquanto ato? O ceticismo predominante deposita no acaso o que já foi atribuído, primeiro, a Deus, em seguida ao homem. Mas não seria tal atribuição a estratégia de se isentar de uma dura verdade, a de que somos o que escolhemos ser? Muito pior que ser vítima do acaso, de uma vida entregue às contingências, é saber que o que se vive fomos nós que escolhemos e hoje cultivamos com todo o ardor. O poema:


Velho Tema I

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Um comentário:

  1. Adorei o poema...
    Sobre a questão do pôr edo estar conpartilho da tua dúvida... Há uma tendência a escapar de nós mesmos e daquilo que escolhemos... Acho... Acho mesmo que o mundo anda maniaco e essa mania desemboca em individuos deprimidos... Mas isso são só considerações inacabadas...

    Até.

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