Atividade em Spinoza?
O que é a "atividade" em Spinoza? O uso do termo "atividade" em vez de liberdade se dá em razão do fato de que para o filósofo a liberdade não existe se entendida enquanto livre arbítrio. Portanto, um estudo acerca da noção de atividade em Spinoza terá fundamentalmente como objetivo a colocação em xeque da noção de liberdade entendida como livre arbítrio, do que muitas consequências nos mais diversos campos poderão ser extraídas. Por exemplo, no campo político, se liberdade não é escolha, como pensar uma democracia sem partir de uma concepção de liberdade entendida como livre escolha?
Seria um erro dizer que na filosofia de Spinoza não há liberdade. O estudo de sua Ética é de grande importância porque desvincula liberdade de escolhas livres. Existe em sua filosofia, sim, algo como a liberdade. Mas se em Spinoza a livre escolha não existe, isto tanto pode ser em razão de alguma força externa maior que a determina de fora quanto a ausência de uma faculdade que corresponda à liberdade entendida nesses termos. Para o pensador, livre arbítrio é produto da imaginação, isto é, produto do primeiro dos três gêneros que há de conhecimento. Não entraremos nestes outros gêneros porque este não é exatamente o nosso propósito aqui, mas somente no primeiro uma vez que ter clareza de seu funcionamento nos esclarece acerca do porquê que relacionamos com tanta naturalidade liberdade à livre escolha.
É importante afirmar desde já que, segundo Spinoza, aqueles que se encontram submetidos à servidão são justamente os homens cujo modo de pensar se limita ao gênero da imaginação. Iludidos com o livre arbítrio, acreditando serem causa das ações que realizam, tais homens ignoram a verdade de que o que fazem é efeito de causas que lhes escapam o controle. Então, uma primeira aproximação do gênero de conhecimento da imaginação é que ele se caracteriza pela inversão entre causa e efeito. São as forças afetivas que conduzem os homens. Deleuze em Spinoza e os signos fará uma crítica à consciência mostrando de que modo esta é restrita ao gênero de conhecimento da imaginação. A seguir, um trecho da Ética onde isso fica bastante evidente:
A consciência é apenas um sonho, embora com os olhos abertos. "É assim que um menino pequeno julga desejar livremente o leite, um jovem em cólera querer a vingança, e o medroso a fuga. Um homem em estado de embriaguês julga também que diz por uma livre decisão da alma aquilo que, fora dessa situação, preferiria ter calado" (DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Trad. Abílio Ferreira. Porto: Rés Editora, 1970. p. 29.)
O conceito de afecção é outro conceito de extrema importância para quem estuda a filosofia de Spinoza. O que é afecção? Para Spinoza, afecção é o efeito do encontro entre os corpos, isto é, são "as modificações do modo, os efeitos de outros modos sobre si," nas palavras de Gilles Deleuze (o corpo é o modo do atributo extensão da substância/natureza/deus) (Idem, p. 49.). Se dois corpos se chocam, afecção é o que resulta em cada corpo envolvido no choque, são as marcas que um corpo deixa no outro. Ora, para Spinoza o primeiro gênero do conhecimento resulta desses encontros, ele é produto dessas afecções. Mas a inversão de que falamos própria do conhecimento do gênero da imaginação consiste no procedimento de tomar os efeitos do choque como apartados de suas causas. Eis porque aqueles que pensam no interior deste gênero mais baixo se encontram na servidão: achando que são a origem de suas ações, não se dão conta de que elas são o efeito de forças que estão para além de seu controle.
Como dissemos, as afecções são o que resulta dos encontros entre os corpos. Mas há duas espécies de encontros. Há os bons encontros e os maus encontros. Os bons encontros se caracterizam pelo aumento da potência do corpo, do que resulta em alegria; ao passo que os maus encontros são aqueles que diminuem a potência do corpo, sendo a tristeza o seu resultado. As potências que tanto podem ser aumentadas ou diminuídas dizem respeito à capacidade de agir e de pensar, respectivamente. Em outros termos, um corpo potente e alegre é o corpo com maior capacidade de agir; uma alma potente é aquela com maior capacidade de pensar. Lembrando que, para Spinoza, corpo e alma são, cada um, os dois modos dos dois atributos da substância, o atributo do espaço e o atributo do pensamento.
Aqui chegamos à questão da atividade que indicamos no primeiro parágrafo desse texto. Ultrapassar o gênero do conhecimento da imaginação tem como primeiro passo o reconhecimento de que liberdade não é escolha, já que esta se encontra determinada pelos afetos. Considerar-se livre porque acredita-se que as escolhas feitas foram absolutamente espontâneas, que não resultam de uma causa fora do corpo que realiza a ação, é ignorar o fato de que o indivíduo enquanto corpo está a mercê dos encontros. Estamos falando aqui de uma passividade de todas as ideias da imaginação. Mas falar de liberdade é falar de atividade; falar de atividade é falar de potência, tanto do corpo quanto da alma.
Disso podemos afirmar que a liberdade enquanto atividade (e não enquanto livre escolha) e a potência própria da atividade como o aumento da capacidade de ação dependem dos encontros. A noção imaginária de livre escolha tem como pressuposto um indivíduo isolado de onde todas as suas ações partiriam espontaneamente; já a noção de atividade, para que ela seja possível os encontros felizes se fazem necessários: liberdade depende do outro com o qual meu corpo se encontra e de cujo encontro posso aumentar a minha potência. Eis porque Spinoza é um autor importante para se pensar a questão da coletividade, já que é dela de onde pode provir a liberdade. Por exemplo, a questão das cidades. O que seria uma boa cidade senão aquela que justamente promove e organiza os melhores encontros entre seus cidadão, encontros que potencializam os que habitam nela? Se potência é a capacidade de agir, produzir só é possível a partir dos bons encontros. Cabe aqui uma última citação de Deleuze a respeito da atividade de organizar os bons encontros como meio de aumento da potência.
Dir-se-á bom (ou livre, ou forte) aquele que se esforça, enquanto persiste em si mesmo, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com as relações combináveis, e, através disso, se esforça por aumentar a sua potência. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer os efeitos, mesmo quando se lamenta e acusa, sempre que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria fraqueza.
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