segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A aparição do para além dos limites do visível

HÁ ALGUM tempo atrás escrevi sobre o espaço do teatro, o do cinema e as suas diferenças. (link do texto) Havia mostrado que enquanto o espaço do primeiro direciona o nosso olhar para o centro, o do segundo para os limites de suas bordas, sugerindo com isso a presença de um “de fora”, o que em linguagem cinematográfica chama-se extra-campo. Pois bem, obviamente a distinção é puramente ideal. Ambas as formas se imbricam mutuamente: há um pouco de teatro no cinema como há cinema no teatro, e é por isso que os seus espaços coexistem sem no entanto se confundirem. O mesmo ocorre em relação à pintura e à fotografia. A pintura produziria um espaço cuja força de atração sobre o olhar o leva para o centro, ao passo que na fotografia tende na direção oposta o nosso olhar, quer dizer, para as bordas, espécie de efeito de atração daquilo que não aparece no seu espaço interno mas que por uma “vontade” qualquer quer se mostrar. A invenção do cinema pode ser pensada como uma vitória do que escapa ao retângulo do enquadramento em razão de sua possível aparição no interior da cena. Mas, mesmo na pintura (ou desenhos, como veremos) já é possível notar a presença ou, talvez menos, a sugestão dos elementos que estão do lado de fora do enquadramento. Há nestas raras obras uma espécie de pressão do que não aparece sobre o que aparece no retângulo do enquadramento: mais que se tornar visível, tornar-se existente. Pintores como Degas, Manet, Velásquez e o xilogravurista M. C. Escher são alguns exemplos de quem produz uma arte estática mas sensível ao "de fora". Não recorrem ao movimento (próprio do cinema) para trazer à luz o que não é visível pelo restrito espaço da cena, mas usam como recurso algo que reflete, podendo ser um espelho ou mesmo a água.
Os trabalhos seguintes possuem o espelho como o objeto que permite a aparição do que está para lá dos limites do visível. Os dois primeiros são do artista Edgar Degas. O terceiro de Édouard Manet. O quarto de Diego Velásquez:




Os três trabalhos seguintes são do xilogravurista M. C. Escher. Agora não são mais os espelhos os objetos que nos permitem a entrada do que não está enquadrado, mas a água (nos dois primeiros) e o vidro, cuja transparência cede lugar ao reflexo.



domingo, 5 de dezembro de 2010

A melodia de uma sonata ou a mulher desconhecida


                                             I

NÃO é novidade a admiração de Proust pelo poeta Charles Baudelaire. No curto trecho selecionado nota-se que o autor da Recherche assume do poeta uma forma de apreciar o que não se apreende em razão de sua natureza fugaz, embora seja outra coisa que uma mulher - tema de "A uma passante": a melodia de uma sonata. Como Swann (e o próprio Proust) nada conhecia de música, a sua relação com ela é de grande interesse justamente para quem sabe algo de música, pois trata-se de uma maneira espontânea de a sensibilidade apreender a sua verdade, diferentemente da de um músico que enxerga nela relações desconhecidas para o leigo. No que diz respeito às artes, segundo o autor (cuja obra além de ser um romance é também uma teoria do romance e uma crítica de arte), a essência de qualquer forma de expressão artística não se transmite pelo intelecto, mas sim pela sensibilidade, a faculdade acerca da qual podemos afirmar como sendo a única capaz de compreender a linguagem de uma comunicação especial que se dá em tal nível. A interação entre mundos, o dos gênios e de seus apreciadores, é entre uma sensibilidade e outra e não de um intelecto a outro. Na música, não é a materialidade sonora ou a lógica das combinações de seus elementos, mas os seus efeitos naquele que ouve, o que Proust chama de “Impressão”, uma combinação do que chega pelo sentido da audição com a imaginação, resultando disso em algo ímpar, um espetáculo para um único espectador, aquele no interior de quem a substância do belo se forma. É o mesmo que afirmar que a beleza – seja de uma mulher, de uma frase melódica ou de uma flor – está mais em quem a aprecia do que no objeto apreciado, pois tal objeto não passa de mero meio para a experiência do sublime. É por este motivo que o exagero do homem sensível - quando diante daquilo que poucos ou mesmo ninguém vê beleza alguma - não deve ser visto como ilusório ou desproporcional. Não existe semelhante coisa como inadequação entre uma impressão e aquilo que a causa. No interior de tal homem, não se distingue até onde é a sua atividade de elaboração, até onde é material bruto que lhe vem de fora. Desse emaranhado resulta a Impressão individual, pertencente somente àquele que a tem.

                                             II

A título de curiosidade, Swann, personagem tão admirado pelo narrador em sua infância, padece, “como de uma dor de dente”, de um amor que sente por alguém de nome Odette, aquela com quem mais tarde irá se casar. Tal união se dará somente após ele se dar conta de que já não a ama (é quando diz: “já posso casar-me com Odette, já não a amo mais”). Crítico da instituição do casamento e contrario ao que é afirmado Proust percebe como condição mesma da união efetiva a ausência de amor, uma vez que o casamento visa a outras satisfações que escapariam à “pureza” do que poderia ser amar.

                                             III

Uma das dificuldades de Swann que justamente levará Proust a chamá-lo de “celibatário da arte” é em relação ao processo de criação. Limitando-se sempre à virtualidade do planejamento, seus projetos nunca ganham vida. Em geral, são eles todos vencidos ou pela preguiça ou pela sua subordinação ao que lhes é inferior, que pode ser tanto a vida mundana (quando perdemos tempo em busca de aceitação), quanto a vida amorosa. No caso de Swann, é o amor principalmente que o impede de criar, de fazer arte e de até mesmo apreciá-la no que ela tem de verdadeiro. Swann subordinava a arte ao amor: sempre que ouvia a pequena frase melódica de Venteuil lembrava-se de Odette. De sua incapacidade de preceber o que poderia haver de belo na música enquanto música resultava a sua recorrente remissão a partir da pequena frase melódica ao sentimento que tinha por Odette, sentimento este tão soberano para Swann, subjugando a ele todas as coisas por submetê-las a seus critérios.

                                             IV

Foi justamente numa festa que Swann ouve a sonata e que depois ficamos sabendo ser de um tal Venteuil, professor de piano sem grande renome. A impressão que ele tem de um determinado trecho da sonata, conhecido como “a pequena frase”, Proust a descreve da seguinte maneira:

“Num lento ritmo ela [frase melódica] o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro, depois mais além, para uma felicidade nobre, inteligível e precisa. E de repente, no ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido, miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome ignora.”
(No caminho de Swann, p.263)

Em seguida, a poesia de Baudelaire. O que é visado não é mais uma frase melódica, mas sim uma mulher que passa. (A tradução é do meu amigo José Fernando Fagundes Ribeiro)



A uma passante

A ensurdecer, ao meu redor a rua urrava.
Longa, esbelta, de luto, em dor majestosa
Passa... uma mulher, e com a mão faustosa
A orla do vestido alçando balançava;

Ágil e nobre, com a sua perna de estátua.
Eu lhe bebia, qual crispado extravagante,
Em seu olho, um lívido céu trovejante,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um clarão... noite após! Fugitiva beleza
Que me fez com o olhar renascer de surpresa,
Só hei de te rever na eternidade agora?

Vai longe! Para sempre, talvez, foi-se embora!
Aonde foste eu não sei, nem sabes aonde vou,
Ah, tu que eu amaria, ah tu que o reparou!

(BRUNO HOLMES CHADS, 6 de Dezembro, 2010)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O função das analogias em Marcel Proust

A DIFICULDADE de se libertar de certos autores fica bastante evidente na recorrência de determinados temas tratados por eles na escrita do cativo. Tal coisa se percebe neste blog no tocante a Proust, aquele em relação a quem ainda me vejo ligado, como se nele coisas ainda pudessem ser extraídas. A angústia consiste no fato de que o que ainda está a ser descoberto certamente seja alguma coisa sem a qual terei problemas para lidar com o que se passa em mim. O grande escritor é aquele que nos apresenta a nós mesmos em razão do fato de que “cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo” (a obra servindo como uma espécie de lente de aumento do que se passa no interior de quem lê mais do que no de quem escreve). Mas deixando o desabafo de lado, o que interessa hoje é o caráter Simbolista de Proust, algo bastante revelador do efeito de sua obra naquele que a ela se entrega. Há nesta tendência literária a já bastante conhecida separação teórica efetuada por Platão entre essência e aparência. A prosa de Proust é simbolista em razão de sua busca pela essência em detrimento da aparência. Como faz isso? Por que meios chega ele à essência? A resposta é a arte poética, o modo por excelência que opera através das analogias. Analogia é o estabelecimento de uma semelhança entre coisas distintas. Proclama em seguida como perda de tempo preocupações relativas ao social e ao amor, para ele meramente ligadas às aparência. O social porque é a busca por reconhecimento e aceitação por um grupo; o amor, porque é a busca pela participação de um mundo, o da pessoa amada, que aquele pela sua condição mesma de amante desde sempre se encontra excluído, não sendo o seu ciúme outra coisa que o efeito de seu ato de decifrar os índices de uma verdade perversa. No início do primeiro volume, quando Marcel põe na boca o bolinho Madeleine molhado de chá, a sensação que este lhe causa o remete ao tempo até então esquecido de sua infância. Muito mais que o passado, é a memória que sai da xícara de chá onde o bolinho fora molhado. (Em sua infância, no quarto da tia enferma ele comia tais bolinhos molhados com chá.) Sensações semelhantes em épocas distintas são o que ele chama de “impressões sensíveis”. Portanto, analogia ao nível da sensação. A sobreposição de épocas distintas num único e mesmo instante através de uma sensação comum a ambas permite a ele a experiência de eternidade em meio a um mundo fugaz. Mas a questão artística ainda não passa por aí, mas sim no campo da linguagem. A arte tem por objetivo a superação do tempo, não só porque ela sobrevive ao artista (como quando o escritor fictício Bergotte morre, “durante toda a noite fúnebre os seus livros (...) velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.”), mas também porque comunica para aquele que tem “impressões” o que pode existir de eterno. É justamente na criação de analogias que as essências são desveladas. Semelhante "método" faz sair verdades de coisas antes tomadas apenas como restritas às aparências e que agora se tornam livres no e pelo espírito do gênio. Um exemplo: ao final da primeira parte do primeiro volume, o narrador ainda criança tem o seu primeiro lampejo artístico quando avista à distância, no caminho de Guermantes, alguns campanários. Ele sente a necessidade de se “desembaraçar” do paradoxo que o atormenta entre o que vê e o que em seu espírito a vaga idéia de um além lhe é sugerida. Sob os campanários que se mostram a ele, o que é isso que escapa ao mesmo tempo que insiste pela sua condição mesma de coisa oculta? Ele diz: “aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, (...) e para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo, compus (...) o pequeno trecho...” As primeiras linhas que escreve rompem como que de uma casca, mostrando a ele mesmo aquilo a que não tinha acesso antes de sua entrada na dimensão poética. Lembrando o que disse certa vez Ferreira Gullar, que “as pessoas se igualam em direitos, mas não em qualidades”, eis então o que distingue os poetas dos homens comuns: realizam um seccionamento que liberta as coisas de sua aparência costumeira e permitem que se perceba as analogias. Não somente o olhar que se tem das coisas como o próprio mundo resulta desse ato, pois não há mundo que não seja para um olhar. Portanto, antes e acima de qualquer coisa, o que Proust nos ensina é a ver.

(BRUNO HOLMES CHADS, 23 de novembro de 2010)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O cinema, o teatro e seus respectivos espaços

Não há dúvidas de que o cinema nada tem a ver com teatro filmado, e não é preciso ser especialista no assunto para saber disso. O fato de o movimento da câmera e a montagem implicarem numa linguagem propriamente cinematográfica isso marca tanto a sua independência quanto atividade em relação ao que é filmado, constituindo algo mais que mero registro de atores encenando papéis para que uma estória seja contada. Mas há, além disso, as diferenças de “espaços” que mais fundamentalmente separa uma arte da outra. Comecemos com o teatro. O espaço que este utiliza está restrito à extensão, o que obriga os seus envolvidos a repetirem a cada apresentação todo o trabalho da encenação. No cinema, o registro da luz no celulóide (ou película) elimina este problema, permitindo, além do transporte do material filmado, a sua reprodução indefinida. Mas há mais: as direções que cada um aponta. Há uma tendência no espaço do teatro em direcionar a atenção para o centro do palco, pois os seus limites são os limites do que é encenado. Tudo o mais, o que escapa às suas ‘bordas’, é matéria e presença inerte, e em hipótese alguma signo, auxílio para contar o que nos é contado. As cortinas, as pilastras de sustentação, portas de saída, extintores de incêndio etc. são exteriores à cena. Como forma de se livrar desses elementos alheios à estória o nosso olhar percorre o caminho em direção ao interior do que se deve e pode ver. Interessante tendência essa do nosso olho, que prefere a ausência do fictício à presença do real. No caso do cinema, o olhar do espectador não é delimitado pelas bordas da tela. De fato, quando se olha para fora dela o que se vê não pertence ao filme, mas sim à sala de cinema (da mesma forma que no teatro). Mas, diferentemente do teatro, no cinema há o que chamam de extra-campo, aquilo que não aparece no retângulo da tela mas que participa virtualmente do que vemos ao mesmo tempo que determina isso que vemos. O termo cena deve ser entendido como o que vemos mais o que não vemos e que pertence à diegese (esse 'a mais' que não é visto mas que poderia sê-lo). O cinema inclui tanto o visível quanto o invisível, e o que é visado pelo enquadramento da câmera não passa de uma pequena porção de toda a cena. Logo, é por uma contingência qualquer que vemos o que vemos dentro do espaço da tela, pois, repetindo, a cena não se restringe a esses limites, uma vez que também abrange o que está fora. Daí provém parte do fascínio que o cinema exerce sobre nós, a sensação de nos encontrarmos dentro do inusitado (sem, obviamente, sofrermos as conseqüências das situações que o cinema nos apresenta, pois tudo não passa de simulação). Lançando mão das figuras geométricas na diferenciação de uma arte para outra, o cone, com sua base voltada para a platéia, esquematiza a atenção dos espectadores do teatro, pois o olhar tende para o centro, portanto, movimento centrípeto; ao passo que no cinema é o vértice do cone que está voltado para a platéia, tendendo os olhares não mais em direção ao centro mas em direção às bordas, na busca do que lhe escapa, obedecendo ao movimento centrífugo sugerido pela possibilidade de aparição do invisível. Temos aqui, mais que diferenças entre duas artes, duas atitudes distintas do olho. A transição de uma arte para outra é uma mudança de interesse: do fechado para o infinito.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Crepúsculo dos Ídolos

O seguinte texto é do alemão Friedrich Nietzsche.

Em todos os tempos quis-se “melhorar” os homens: este anseio antes de tudo chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra escondem-se todas as tendências mais diversas. Tanto a domesticação da besta humana quanto a criação de um determinado gênero de homem foi chamada “melhoramento”: somente estes termos zoológicos expressam realidades. Realidades das quais com certeza o sacerdote, o típico “melhorador”, nada sabe – nada quer saber... Chamar a domesticação de um animal seu “melhoramento” soa, para nós, quase como uma piada. Quem sabe o que acontece nos amestramentos em geral duvida de que a besta seja aí mesmo “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos nociva, ela se transforma em uma besta doentia através do afeto depressivo do medo, através do sofrimento, através das chagas, através da fome. – Com os homens domesticados que os sacerdotes “melhoram” não se passa nada de diferente. Na baixa idade média, onde de fato a igreja era antes de tudo um amestramento, caçava-se por toda parte os mais belos exemplares das “bestas louras”. “Melhoravam-se”, por exemplo, os nobres alemães. Mas com o que se parecia em seguida um tal alemão “melhorado”, seduzido para o interior do claustro? Com uma caricatura do homem, com um aborto. Ele tinha se tornado um “pecador”, ele estava em uma jaula, tinham-no encarcerado entre puros conceitos apavorantes... Aí jazia ele, doente, miserável, malévolo para consigo mesmo; cheio de ódio contra os impulsos à vida, cheio de suspeita contra tudo que ainda era forte e venturoso. Resumindo, um “Cristão”... Fisiologicamente falando: o único meio de enfraquecer a besta em meio à luta contra ela pode ser adoecê-la. A igreja compreendeu isso: ela perverteu o homem, ela o tornou fraco, mas pretendeu tê-lo “melhorado”...
(CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS, Pg. 52)

domingo, 5 de setembro de 2010

A treva, o tempo que se dissipa, o silêncio puro


NO Centro Cultural do Correios, no centro do Rio de Janeiro, tive a chance de ver trabalhos do xilogravurista, ilustrador e desenhista Oswaldo Goeldi. Eu já conhecia uma coisa e outra através de algumas ilustrações de livros que ele fez, como um de Gustavo Corção e outro de Dostoievsky que tenho em casa. A minha atitude em relação ao que via não foi diferente da que tive em casa lendo Lições de Abismo ou as novelas do escritor russo senão pelo fato de vê-las à minha frente, de pertinho, estando eu na mesma posição e distância do artista enquanto as criava. Mas isso é pouco ou mesmo nada relevante: o alcance de uma obra não acontece por uma proximidade dessa natureza. Se fosse isso verdade, os turistas japoneses que vão ao Louvre tirar foto da Monalisa seriam especialistas em pintura renascentista. Diante do que se me apresentava, a minha atitude, como em outras ocasiões, era incerta, profundamente marcada pela dúvida de como ver o que via, pela indecisão na maneira de me portar, se devia ter uma atitude ativa, por exemplo tentar relacionar os quadros à história da arte e principalmente da estética, ou talvez passiva, apreciar simplesmente, sem intelectualizar. Falso dilema esse em que eu me colocava. Definiria a situação como a de uma cegueira que me impedia de “ver” aquelas obras provenientes de um trabalho de criação. O momento marcante que liberou a experiência se deu com o encontro da poesia de Carlos Drummond de Andrade escrito em letras coladas na parede de um dos salões da exposição. Uma luz especial fora lançada por sobre todas as salas, iluminando, fazendo resplandecer em cada quadro uma realidade para mim ainda virgem, permitindo surgir das superfícies escuras um mundo novo, o daquele artista incompreendido até o meu decisivo encontro com o verbo. Não os classificava, pois o poema em questão não me fornecia conceitos à luz dos quais interpretar “melhor” Goeldi. Não é disso que se trata. Tampouco me dizia para relaxar e não pensar em nada, mas apenas curtir os desenhos. Repletas de um pensamento de espécie singular, as palavras de Drummond recortavam determinados traços das figuras, davam-lhes vida ao mesmo tempo que lhes davam voz. Mas seria isso uma espécie de subordinação do olho, da visão e da imagem em geral à palavra? Logo, seriam as artes plásticas uma arte menor, ela mesma refém de uma outra forma de expressão, como a poesia? Ou, que privilégio seria esse da palavra em relação ao que se vê? A resposta é negativa e não existe privilégio de uma coisa sobre a outra. O que ocorre é que a experiência passa por determinados crivos que podemos chamar de código, sendo a poesia justamente a arte por excelência de intervenção de sua estrutura. Portanto, com maior nitidez que nas fotografias, a realidade agora destacada que os quadrados emoldurados pendurados à parede apresentavam me sugeria um respeito ao que desde meu nascimento até o momento daquela descoberta eu certamente me manteria afastado: a treva e o tempo que se dissipa constituintes de um ambiente de silêncio puro, cenário predileto das criaturas portadoras de outra moral, estes mesmos seres que se desdobram na realização de misteriosos empenhos, por vezes até cruéis quando vistos pelos impregnantes ângulos ensinados por nossos educadores. Vamos às palavras de Drummond!

A Goeldi
De uma cidade vulturina
vieste a nós, trazendo
o ar de suas avenidas de assombro
onde vagabundos peixes esqueletos
rodopiam ou se postam em frente a casas inabitáveis,
mas entupidas de tua coleção de segredos,
Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

Ainda não desembarcaste de todo
e não desembarcarás nunca.
Exílio e memória porejam das madeiras
em que inflexivelmente penetras para extrair
o vitríolo das criaturas
condenadas ao mundo.

És metade sombra ou todo sombra?
Tuas relações com a luz como se tecem?
Amarias talvez, preto no preto,
fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã,
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Estás sempre inspecionando
as nuvens e a direção dos ciclones.
Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo
são elementos de teu reino
onde a morte de guarda-chuva
comanda
poças de solidão, entre urubus.

Tão solitário, Goeldi! mas pressinto
no Glauco reflexo furtivo
que lambe a canoa de teu pescador
e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus negrumes
uma dádiva de ti à vida.

Não sinistra
mas violenta
e meiga,
destas cores compõem-se a rosa em teu louvor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1958)


sábado, 24 de julho de 2010

A desaparecimento de Deus e as suas conseqüências no desejo

O MUNDO não é simplesmente marcado pelas revoluções, mas é antes de tudo refeito por elas. A revolução política no final do século XVIII decapitou o rei. E junto com ele, Deus. Mas também se pode dizer que o que ocorreu foi o inverso: quando Deus se tornou prescindível, o rei dispensável. A história doravante foi a sucessão de malogros das tentativas de sua reestruturação impossível. Como fazer as coisas sem uma garantia ontológica como a que havia antes? Eis o tipo de problema que aparece. Enquanto que as ordens cósmicas e humanas se pautavam pelos fins, pelo objetivo em direção ao qual todas as coisas naturalmente tendiam, agora é o indefinido. Com isso, a natureza do tempo foi modificada quando dele se retirou as finalidades que o absoluto conferia, finalidades como a salvação da alma, o último império governado por Cristo, o fim da sucessão do tempo e do movimento do devir. Sem o estático como promessa, o tempo torna-se cego. Chama-se de modernidade este novo mundo sem Deus, mundo para o qual idéias como de “fim da história” ou de anulação dos acontecimentos são uma fábula. No campo da economia, relembrando Marx, o reflexo do que foi dito acerca dos fins que deixaram de existir aparece na famosa inversão efetuada pelo surgimento do capital. M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria) é substituído por D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro). A mercadoria era o fim do dinheiro, objetivo último que cessava o movimento da troca pela sua realização e satisfação dos envolvidos. Só para lembrar, dinheiro é o trabalho acumulado numa forma material. Todo trabalho visava algo outro que o próprio trabalho, que eram as mercadorias. Depois da substituição, quando o fim torna-se o trabalho e as mercadorias nada mais que o meio, entra-se na era do capital, a era da ausência dos fins, não havendo mais o “repouso” que a mercadoria representava no processo da troca. A finalidade do dinheiro é o próprio dinheiro. No campo das artes, o índice desse desaparecimento se manisfesta das mais variadas formas, por exemplo a que foi exposta no texto postado anteriormente (“O piano de Rebecca Horn”) em que o deslocamento do objeto equivale a retirada de sua função, adquirindo ele desta maneira valor de arte. Na pintura, isso se dá quando a representação fiel da coisa a ser representada deixa de ser o fim almejado, permitindo o surgimento de estilos que nada dependem da existência anterior – e exterior – de um mundo, mas antes o criam: tanto as novas estéticas são formas novas de ver como cada gênio criador de um estilo artístico não deixa de ser uma espécie de deus secular. Na literatura, por exemplo a de Edgar Allan Poe, para ficar com apenas um exemplo, o poema O corvo que repete o refrão “nunca mais” lembra o homem solitário que a já falecida Lenora não terá mais com ele em mundo algum justamente por não existir outro além desse em que as coisas perecem; ou o curto conto Homem na multidão, em que um transeunte escolhido ao acaso anda sem chegar a nenhum lugar ao mesmo tempo que é seguido pelo narrador, cuja forte impressão em razão desta falta de um lugar a que chegar é transmitida ao leitor. E o que dizer do desejo? O que se quer quando se deseja em uma época sem as finalidades de antes, sem os objetivos da satisfação? Ora, sem tal fim, o desejo torna-se circular. A psicanálise foi a maneira criada por Freud de dar inteligibilidade a essa circularidade, ao desejo que não deseja nada além de si mesmo, que quer continuar desejando. Numa piada um pouco sem graça, a pulsão sexual como o nome desta circularidade nos é mostrada com o máximo de clareza no não entendimento de sua estrutura por parte do idiota:

“Ao idiota que pela primeira vez estava tendo uma relação sexual, a garota sua parceira diz:

- Está vendo o buraco entre as minhas pernas? Meta aí dentro. Agora enfie bem fundo. Agora puxe para fora. Para dentro, para fora, para dentro, para fora...

- Espere aí! – interrompe o idiota. – Decida-se! Para dentro ou para fora?”


domingo, 30 de maio de 2010

O piano de Rebecca Horn


Eu não fui ver, mas quem foi me contou, razão suficiente para que me sinta autorizado a comentar. No ccbb, trabalhos de Rebecca Horn estão sendo expostos. Numa de suas obras, a resposta à pergunta “que é arte?” fica bastante evidente. Trata-se de um piano pendurado no teto, executando, de 15 em 15 minutos, os seguintes movimentos: teclas semelhantes a entranhas que saem de seu lugar devido e o tampão que se abre. Por uma engrenagem desconhecida, esses movimentos parciais acontecem num certo ritmo. Mas na verdade não são parciais os seus movimentos: o piano inteiro se transforma, dura como um objeto natural que desabrocha para o sol. O piano de Rebecca desabrocha para o olhar. O instrumento agora não produz ritmo a partir do silencio e som alternados. Possui ele mesmo um ritmo, e seus movimentos nos dão o testemunho. Enfim, não existe aqui fundo fixo contrastando com a figura animada (teclas e tampa). O piano também não toca música, mas o que nos comunica é a sua forma visível; dele nada se ouve, mas apenas se vê. Temos, portanto, um piano sem a finalidade musical, um objeto desprovido de sua função. Essa é justamente a resposta que Rebecca nos dá à pergunta a que me referi acima. O mesmo acontece com o penico de Duchamp: deslocando o objeto de seu contexto, perde ele logo a sua função. E mais: deslocando-o para um museu, vira obra de arte. O que se vislumbra neste gesto é a separação entre a coisa e sua função, que retirando da coisa a sua função resta apenas um real, um substrato material inerte movido por engrenagens. A separação entre coisa e função nos revela que lidamos com elas na medida em que nos relacionamos com a abstração das funções, cuja “matéria” é a expectativa do uso. Daí o efeito de estranhamento quando se está diante de um penico num museu ou de um piano no teto de um museu, estranhamento proveniente de alguns vícios nossos, por exemplo o de perguntar em silêncio “para que serve?” ao que nos cerca. Antes de constituírem objetos extraordinários em si mesmos, belos ou sublimes, os objetos de arte contemporânea equivocam a relação com o ordinário, o comum e a antecipação de seu uso, o tão “natural” e espontâneo afastamento da presença da coisa e de seu instante, simplesmente tratando-os como extraordinários através da mudança do lugar. O teto sobre os pés do piano é levar o chão ao lugar do teto, a terra ao céu, é pôr o profano no lugar do sagrado: eis a inversão de um mundo deslocado. Quando equivocado, o mundo vira de cabeça para baixo. A arte de hoje faz isso.

(Bruno Holmes Chads, 30 de maio de 2010)

Marcha do cotidiano interrompida

No transtorno vivido pela cidade de Niterói nos primeiros dias do mês de abril, algo muito curioso pôde ser observado. Em torno da palavra “caos”, tão freqüente nas bocas dos fluminenses que a pronunciavam em todas as direções, uma certa confusão. A clareza do problema se deu após os rumores de arrastão. O caos, inicialmente natural em razão das fortes chuvas, resvalou para o social. O que era dito nas ruas do bairro de Icaraí na tarde da quinta-feira - 8 de abril - era que um grande arrastão havia começado no centro da cidade, passado pelo ingá e que já havia chegado ao bairro de Icaraí. Niterói, portanto, estava sendo alvo de uma fúria natural e da fúria de moradores dos lugares engolidos pela terra transformada em lama pelas águas despencadas do céu. Em suma, a revolta vinha de cima e de baixo, ameaçando a paz dos moradores deste espaço intermediário. A atmosfera era de suspensão de todas as leis e regras e o poder do Estado mostrava-se impotente aos olhos de todos. Mas não tardou a descobrir que os tais arrastões não passavam de rumores, que talvez no máximo três pessoas haviam quebrado uma loja em momento de fúria por causa da perda da casa em deslizamento. Enquanto alguns lojistas do bairro fechavam as portas de seus estabelecimentos, curiosos olhavam da rua até onde as suas vistas alcançavam em direção ao nada, na expectativa de poder “ver alguma coisa”. Era um misto de horror e curiosidade. Mas por trás do semblante de uma expectativa especial e das rugas de medo nos rostos, notava-se num de seus cantos um certo prazer, diria mesmo uma alegria cerimoniosa, escondida de vergonha por trás da cara do falso, ou melhor, do ambíguo pavor: vivíamos todos dias incomuns, dias de exceção. A “marcha do cotidiano” fora interrompida naquelas horas pelos supostos acontecimentos ocorridos em todas as esferas e experimentávamos agora a multiplicidade dos corpos num espaço bruto ao invés do antigo e entediante restrito ao fluxo de pessoas e coisas segundo regras mais ou menos consentidas. Um desejo obscuro? Possibilidade de realização do que em condições normais seria impossível? Talvez. Mas, repetindo um clichê do meio psicanalítico, queremos realmente o que desejamos? O cinema responde. No prefácio do livro “Hitchcock Truffaut” escrito por Ismail Xavier, é afirmado que uma das razões do fascínio pelo cinema é a experiência do “medo assegurado, a violenta ruptura da ordem moral que os espectadores simulam temer mas desejam”. Quando se está diante (mas à distância) de uma ameaça de fim do que se vive no dia-a-dia, por inverossímil que se apresente, determinadas idéias de prazeres sem limites têm nos entediados amplo terreno fértil. Enfim, estavam todos nesse dia de fato apavorados, menos pelo o que “os perturbadores da ordem” poderiam fazer de mal a eles do que o que eles mesmos, perturbados com o que se depararam dentro de si, eram capazes em situação de suspensão das leis.

(Bruno Holmes Chads, 9 de abril de 2010)