Um Bolsonaro presidente traz à tona um descompasso fundamental entre uma coisa e o lugar que essa coisa ocupa. É como a arte ready-made, de Marcel Duchamp, A fonte (1917): um urinol de porcelana branco exposto no museu. O "lugar" que o urinol ocupa aberto pelo espaço de um museu confere à peça o mesmo status que somente as "verdadeiras" artes possuíam. Mas um urinol? Nada parece tão distante de fruição artística quanto aquilo para que um urinol serve. Quanto ao Bolsonaro, não seria ele também o estranho ocupante de um "lugar" que se supunha de valor elevado (o cargo de presidente)? Seu modo tosco, rude, assim como a trivialidade de um urinol, o uso que se faz dele, sua forma que em nada sugere o que se entende por beleza, tudo isso traz à tona um desencontro fundamental do "objeto" com o "lugar" que esse mesmo objeto ocupa. Anunciado por Duchamp e confirmado por outra figura como Donald Trump e agora Bolsonaro, esse desencontro talvez constitua uma importante chave de interpretação para uma série de eventos nos mais variados campos. Se diante de um urinol no museu nos perguntamos "isso é mesmo arte?", é diante de um Bolsonaro que nos perguntamos: “afinal, o que é a presidência de um país?” Se hoje uma figura como a de Bolsonaro cola ao cargo que certamente ocupará é porque ultrapassamos o último fio de aparência que sustentava todo o edifício da República. Estar diante de Bolsonaro é não saber ao certo do que se está diante. E se o que antes era piada e hoje não é mais é porque a fratura da realidade, marcada pelo desacordo entre o "objeto" e o "lugar", foi exposta. O feito subversivo de Duchamp, além de ter posto a nu esse desacordo, mostrou que todo desmonte de qualquer formação (política, estética) só pode se dar a partir de dentro. Pouco ou nada adianta afirmações do tipo "o capitalismo é injusto", "na política só há canalhas", "a estrutura dos museus é a expressão de classe" etc., pois partem todas elas "de fora" daquilo que pretendem "ajustar" ou destruir. A verdadeira subversão ou parte "de dentro" ou ela não existe por sua ineficiência. Da mesma maneira que o urinol de Marcel Duchamp no campo das artes, Bolsonaro no campo da política leva ao limite a contradição inerente até a mais completa implosão da formação que a traz em seu cerne, o desacordo radical entre o "objeto" e o seu "lugar" na estrutura. Talvez seja isso o que devemos entender por contradição, aquela mesma a que já se referiram como o motor da história: revelado o caráter obsoleto de uma determinada ordem que distribui os lugares (de presidência, das artes, do belo), é iminente uma reestruturação absoluta a que muitos chamam de Revolução.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário