sábado, 29 de março de 2025

Os mortos-vivos e suas lições

Foi em razão de uma forte gripe que me impediu de sair de casa ontem e hoje que resolvi assistir à série The Walking Dead. Gosto de filmes de mortos-vivos, pois considero que há duas lições fundamentais a serem extraídas desse tipo de produção.

Antes, é preciso lembrar que a questão central de tais filmes não são os mortos-vivos propriamente, mas a situação peculiar na qual o mundo se encontra. Dado tal contexto, os sobreviventes, aqueles que ainda trazem em si a substância de sociabilidade, como eles convivem? O tipo de sobrevivência em jogo, portanto, não é tanto escapar das hordas repugnantes que perambulam sem sentido ou finalidade pelas ruas. O desafio é a convência entre eles próprios, os ainda vivos. É da convivência entre os vivos que a sobrevivência depende. Essa é a primeira lição.

A segunda questão é a seguinte: as pessoas insistem com hábitos e modos de ser próprios de um mundo que não existe mais. O personagem Rick Grimes, por exemplo, não tira o seu uniforme de policial mesmo vivendo numa realidade em que sequer existe Estado. Será ele uma espécie de Jacobina, personagem do conto O Espelho, de Machado de Assis, alguém que só não sucumbe ao vazio porque, em meio à solidão, se veste com a farda de Alferes (alma exterior), recuperando, desta forma, sua identidade prestes a ir embora? Ou um Robinson Crusoé, que quanto mais busca impor à ilha os símbolos de sua antiga realidade europeia mais a ilha o vence?

As relações entre homens e mulheres, as divisões do trabalho, os preconceitos raciais, etc., tudo isso parece resistir e perdurar num tempo em que tudo já desmoronou. Esses filmes nos mostram essa dificuldade de as pessoas reinventarem suas formas de estarem no mundo, de reinventarem a si mesmas. Esse ponto cruza com o primeiro, uma vez que a convivência da qual depende a sobrevivência só é possível por meio da invenção de um outro modo de ser e de estar. Em suma, é a situação em que é necessário viver de outra forma para que um outro mundo possa surgir. Mundo não é outra coisa que as pessoas, suas relações, seus vínculos.

Dito isto, o que é um morto vivo? É um ser entre duas mortes, a simbólica e a biológica. Algo naqueles corpos insiste, os torna famintos de cérebro, sangue, carne. No entanto, simbolicamente não existem, uma vez que não possuem identidade, não criam laços, não estabelecem vínculos. Resumindo, são seres sem Mundo. O morto-vivo é a materialização de uma pulsão cega, de uma força simultaneamente além e aquém de todo e qualquer enquadramento cultural e social.

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