sábado, 24 de julho de 2010

A desaparecimento de Deus e as suas conseqüências no desejo

O MUNDO não é simplesmente marcado pelas revoluções, mas é antes de tudo refeito por elas. A revolução política no final do século XVIII decapitou o rei. E junto com ele, Deus. Mas também se pode dizer que o que ocorreu foi o inverso: quando Deus se tornou prescindível, o rei dispensável. A história doravante foi a sucessão de malogros das tentativas de sua reestruturação impossível. Como fazer as coisas sem uma garantia ontológica como a que havia antes? Eis o tipo de problema que aparece. Enquanto que as ordens cósmicas e humanas se pautavam pelos fins, pelo objetivo em direção ao qual todas as coisas naturalmente tendiam, agora é o indefinido. Com isso, a natureza do tempo foi modificada quando dele se retirou as finalidades que o absoluto conferia, finalidades como a salvação da alma, o último império governado por Cristo, o fim da sucessão do tempo e do movimento do devir. Sem o estático como promessa, o tempo torna-se cego. Chama-se de modernidade este novo mundo sem Deus, mundo para o qual idéias como de “fim da história” ou de anulação dos acontecimentos são uma fábula. No campo da economia, relembrando Marx, o reflexo do que foi dito acerca dos fins que deixaram de existir aparece na famosa inversão efetuada pelo surgimento do capital. M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria) é substituído por D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro). A mercadoria era o fim do dinheiro, objetivo último que cessava o movimento da troca pela sua realização e satisfação dos envolvidos. Só para lembrar, dinheiro é o trabalho acumulado numa forma material. Todo trabalho visava algo outro que o próprio trabalho, que eram as mercadorias. Depois da substituição, quando o fim torna-se o trabalho e as mercadorias nada mais que o meio, entra-se na era do capital, a era da ausência dos fins, não havendo mais o “repouso” que a mercadoria representava no processo da troca. A finalidade do dinheiro é o próprio dinheiro. No campo das artes, o índice desse desaparecimento se manisfesta das mais variadas formas, por exemplo a que foi exposta no texto postado anteriormente (“O piano de Rebecca Horn”) em que o deslocamento do objeto equivale a retirada de sua função, adquirindo ele desta maneira valor de arte. Na pintura, isso se dá quando a representação fiel da coisa a ser representada deixa de ser o fim almejado, permitindo o surgimento de estilos que nada dependem da existência anterior – e exterior – de um mundo, mas antes o criam: tanto as novas estéticas são formas novas de ver como cada gênio criador de um estilo artístico não deixa de ser uma espécie de deus secular. Na literatura, por exemplo a de Edgar Allan Poe, para ficar com apenas um exemplo, o poema O corvo que repete o refrão “nunca mais” lembra o homem solitário que a já falecida Lenora não terá mais com ele em mundo algum justamente por não existir outro além desse em que as coisas perecem; ou o curto conto Homem na multidão, em que um transeunte escolhido ao acaso anda sem chegar a nenhum lugar ao mesmo tempo que é seguido pelo narrador, cuja forte impressão em razão desta falta de um lugar a que chegar é transmitida ao leitor. E o que dizer do desejo? O que se quer quando se deseja em uma época sem as finalidades de antes, sem os objetivos da satisfação? Ora, sem tal fim, o desejo torna-se circular. A psicanálise foi a maneira criada por Freud de dar inteligibilidade a essa circularidade, ao desejo que não deseja nada além de si mesmo, que quer continuar desejando. Numa piada um pouco sem graça, a pulsão sexual como o nome desta circularidade nos é mostrada com o máximo de clareza no não entendimento de sua estrutura por parte do idiota:

“Ao idiota que pela primeira vez estava tendo uma relação sexual, a garota sua parceira diz:

- Está vendo o buraco entre as minhas pernas? Meta aí dentro. Agora enfie bem fundo. Agora puxe para fora. Para dentro, para fora, para dentro, para fora...

- Espere aí! – interrompe o idiota. – Decida-se! Para dentro ou para fora?”


7 comentários:

  1. Considerações a modo teológico...

    A modernidade extinguiu Deus, ou o pensamento metafísico do "ser". A pós-modernidade trouxe o Deus de volta à pauta do dia, pois a razão não deu conta de explicar a desumanização (isto é apenas um olhar...)racionalizada do séc XX. Alguns chamam de "sagrado selvagem",pq não é delimitado pelas instituições ou tradições religiosas. Entende-se que há, no campo individual (e não mais via comunidade), a busca por Deus. Um deus que dê sentido à existência....temos muito meios mas nenhum fim...acaba-se a era das grandes metanarrativas e a transcendência é vivida no presente.
    Então, não seria o desejo humano uma busca? Busca de transcendência? Desejo não seria o Eros divino manifestado no ser humano? "O que se quer quando se deseja em uma época sem as finalidades de antes, sem os objetivos da satisfação?" O desejo serve para mover e/ou co-mover o ser humano. Lacan diria: "não cedas de teu desejo". Desejar o desejo sem pensar em satisfação...ser um ser de desejo. Ser desejante, mais que ser pensante...é bem provável que haja circularidade no desejo, eu entendo-a como uma circularidade em espiral, sempre te leva a outro lugar...espiral ascendente ou descendente. Assim como "a morte de Deus" - na religião - "purificou" a doutrina, trazendo discernimento ao campo teológico - que tornou-se autocrítico - penso que no sentido do desejo humano, ela (a morte de Deus) pode proporcionar o desvelamento do sentido mais profundo do desejo. E qual será?

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  2. Querido irmão, agradeço por dividir comigo seus pensamentos. Achei muito interessante seu texto, coerente e inteligente. Mas, como sou inquieta, ele agitou algumas considerações...


    O movimento do devir reforça a necessidade do trabalho sempre. Trabalho esse, que gera no ser a necessidade de servir, de ser útil. Como trocadilho ser-vir, pois sempre que servir receberá a altura dos seus atos. Recompensa que põe à prova a ausência dos fins(?), essa sim, leva a um mundo sem Deus, à falta de desejos, a malogros e à convicção de que a morte acaba a vida e as coisas perecem num único mundo, somente material.Sem relação causa e consequência; ação e reação. Onde está o AMOR?
    O AMOR eterniza Deus como a face interna de nós.
    O Amor foi e É o objetivo de Deus quando, historicamente, Cristo revoluciona a sua época vivendo no meio de almas animalizadas, exemplificando o AMOR ao próximo como degrau na escala espiritual(o tal movimento do devir...).

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  3. Mônica,

    Acredito que a vontade de transcendência seja um resíduo dos outros tempos, daqueles em que a verdade ainda estava inscrita no real. Mas na falta da transcendência e de o desejo nada encontrar após inúmeras tentativas, ele “revira” no ponto mesmo de seu limite, obtendo como resposta o próprio avesso da fantasia que lhe deu as coordenadas na eleição de um objeto para desejar. É como no poema de Baudelaire, em que Ícaro deseja tocar o sol mas perde as asas e por isso encontra o abismo:

    Em vão do espaço achar eu quis
    Seu meio e fim, enfim, seu todo
    Sob não sei que olho de fogo
    Sinto a minha asa por um triz

    Ora ardo pelo amor do belo,
    Sem o glorioso benefício
    De dar meu nome ao precipício
    Onde findará meu anelo.

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  4. Querida irmã Wyna,

    O amor incondicional é o amor puro, que não visa nada além de si mesmo. Na época em que as coisas que se referem a Deus tinham valor de verdade, o amor era interessado em algo outro. Por exemplo, a religião, o meio pelo qual se amava a Deus e ao próximo, revelou ser a forma de realização do amor que o crente tem por si mesmo, uma vez que via nela o meio de dar continuidade à sua própria vida.

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  5. Nunca tinha pensado na vontade de transcendência como um resíduo dos tempos antigos...interessante...(vontade é o mesmo que desejo?) de qualquer forma, o desejo de transcendência está presente na pós-modernidade. Então pergunto, pq vc considera resíduo e não circularidade do desejo? A transcendência estaria no presente e não no "real" como antes. Mudou de lugar epistemológico ;-). O virtual tb é presente, enfim não há tanto o real mas realidades, pluralidades mil. O que diferencia tudo isso? Acho que o sujeito, que interpreta e experiência do desejo. Talvez nossa experiência seja de um desejo avesso, sem sentido. Vc afirma que Deus não tem valor hj como verdade. Isso é mais ou menos, vai depender do sujeito e da sua experiência no mundo plural.
    Pensar o desejo em si mesmo é uma abstração metafísica, não inteligível. Desejo não é só pulsão. Isso é uma redução freudiana. Desejo existe como experiência humana e dizem alguns, que tem sua origem (ou espelhamento) em Deus. Eros é amor. E o amor humaniza. O desejo é o amor que caminha, que co-move. O ágape seria um amor mais contemplativo. Acho que o desejo nunca teve um fim a não ser o de fazer o humano querer...nós, decidimos anteriormente atibuir-lhe sentido último...fantasias...e hj, o avesso do desejo nos impele a experimentá-lo nu e cru. Talvez a morte de Deus significa a morte das fantasias do desejo. Não penso que é o desejo que quer continuar desejando, é o humano que deseja e por isso falei em "ser desejante"...o desejo existe sem o humano?

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  6. ah...eros e tanatos...desejo e morte estão relacionados tb! Ícaro expressa em sua poesia. A morte como fim é sem dúvida o devir de todo ser, e o desejo pode ser atribuído a um sentimento de continuidade - o desejo sexual gera a procuração. Ícaro aponta para isso no poema quando diz que o precipício que não levará seu nome. Sem continuidade. Somos seres descontínuos, mas que trazemos dentro de nós, a passagem à continuidade (divisão celular na fecundação entre semem e óvulo - uno primitivo se tornou dois). Se há dois, há descontinuidade entre 2 seres). Mas a passagem implica entre os dois um momento de continuidade. O primeiro ser morre, mas na sua morte, surge um momento fundamental de continuidade entre dois seres. O novo ser é em si mesmo descontínuo, mas traz em si a passagem à continuidade, à fusão, mortal para cada um deles, de dois seres distintos. Acho que o desejo se insere nesta questão de descontinuidade e continuidade dos seres...

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  7. Outro exemplo literário é "Memórias do subsolo"(também traduzido como "Notas do subterrâneo"), de Dostoiévski, que tem muito a ver com as ideias de Nietzsche e Freud.

    Trechos:

    "O homem é essencialmente um animal criador, obrigado a buscar conscientemente um objetivo e dedicar-se a um ofício de engenheiro - isto é, construindo incessantemente novas estradas, levem aonde levarem."

    "Ele ama o processo de alcançar, mas quando alcança já não está mais satisfeito, o que é tremendamente ridículo..."

    Abraços!

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