sábado, 15 de janeiro de 2011

Posturas diante do nada

NO DIA 1º de março do ano passado postei neste blog um texto cujo título era "Imobilidade e indiferença do que já é morto" (link do texto). A motivação para trazê-lo à luz foi a recorrência de descrições de certas cenas em autores de diferentes nacionalidades e estilos. Gustave Flaubert e Augusto dos Anjos nos mostram o estranho no interior mesmo da casa, fazendo do espaço íntimo do lar algo ameaçador, hostil como o "lado de fora": numa imobilidade atordoante seus objetos se revelam indiferentes à dor de quem é vivo. Em O espelho, conto de Machado de Assis, há também essa espécie de revolta das coisas da casa em relação àquele que nela habita: contra o homem da consciência, o relógio da sala de movimento automático explana o vazio. A sua pêndula, de marcadora da hora à anunciadora de um mal que corroe, ao "piparote contínuo da eternidade"; o "diálogo do abismo"; "cochicho do nada". Resulta disso a mortificação de um homem entregue à solidão: "defunto andando, (...) boneco mecânico". A saída para o mal que o subtrai por dentro, para o silêncio que dissolve a fronteira imaginária que separa e distingue o interior do exterior, o dentro e o fora, o eu e as coisas, foi a criação de um duplo. A presença de sua imagem refletida com a vestimenta de sua profissão de Alferes mais do que lhe oferecer conforto torna-o imune à loucura para onde a atmosfera de silêncio e a mudez das coisas o arrastavam.
       Relendo a primeira parte de Em busca do tempo perdido pude encontrar um trecho semelhante aos de Flaubert, Augusto dos Anjos e Machado de Assis. Diferentemente deles, Proust parece saborear a oquidão de seu quarto na madrugada. Longe de ver nos objetos inanimados o seu contraponto morto, à insensibilidades deles o personagem se entrega, gozando do privilégio da indiferença.

"Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão por um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos orgânicos das madeiras, para abrir os olhos e fixar no caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me."
(Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 21)

4 comentários:

  1. Alucinante Bruno.
    abç. Fred.

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  2. Interessante!
    No conto de Machado há uma "revolta das coisas", é como se a solidão despertasse, animasse os objetos. No trecho de Proust, como você ressaltou, a personagem acaba se integrando aos objetos; no início do período o narrador (sujeito, observador) se distingue dos objetos (ouve estalidos) e no final a imobilidade do sono os torna - sujeito e objetos - uma só coisa.
    Muito legal!
    Abraços

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  3. Essa passagem de sujeito para objeto é de fato a metamorfoase pela qual os personagens enfrentam quando imersos na solidão.
    Um abraço!!!
    (vamos marcar um encontro para botar as ideias em dia!)

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  4. Belíssimo texto, cara. Em algum momento da existência, considero a solidão como ausência de vínculos ou laços "reais". A metamorfose de sujeito para objeto parece-me exemplificar isso... solidão, o "ser" sem vínculos é como um ser-objeto...não há diferença.

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