terça-feira, 3 de setembro de 2013

Que luz? Que mundo?

HÁ UMA série de trabalhos de René Magritte em que se vê uma separação. Tais obras são divididas em uma parte de baixo e uma outra de cima. Na de baixo, há casa ou casas, rua ou um quintal, poste de luz; na de cima, um céu. Mas ambas não chegam a formar um todo porque parecem não se juntar, a não ser forçosamente pela sua disposição numa mesma superfície.

Acrescentem escuridão, silêncio e a atmosfera da alta madrugada à descrição feita da parte inferior, e percorrendo com o olhar em direção ao topo, lá onde a coerência esperava encontrar um céu preto da noite vê-se um céu azul com branquinhas nuvens flutuantes.

Toda a parte de baixo parece dizer respeito ao homem, pois é o cotidiano de seu descanso, o calmo lado das vidas quando em repouso. O céu acima deste "mundo humano" é outro mundo. Neste há indícios de um sol pela presença indireta da uma luz natural: é dia pleno. Portanto, dia ensolarado em cima, noite fechada embaixo. O mundo concreto do homem é aqui retratado como noite, e o da "natureza", como dia.

Mas não existe romantismo de nenhuma espécie aqui. Por que a luz da parte de cima, a luz do dia, não chega à parte de baixo iluminando-a? No que aparenta ser mera diferença de horários na tela contínua ou dois momentos postos em simultaneidade pela perspectiva, tem-se ali dois mundos que não se comunicam entre si, posto que não compartilham o mesmo espaço: os objetos de um não trafegam em direção ao outro sem deixar eles próprios de ser o que são. É em razão de uma tal descontinuidade que a luz de uma parte não transluz na outra parte.

O que permite com que toda essa parte inferior não se perca na indistinção da escuridão e possa então aparecer como imagem é a luz que ela própria produz. Pode-se dizer que uma separação radical entre mundos como a que estes trabalhos de Magritte mostram diz acerca do artifício. É a luz do poste que retira da escuridão absoluta as coisas, permitindo assim a todos que as vejam.

Se é dia ou noite, o que ocorre na "natureza" pouco importa: nada proveniente dela tem alguma determinação no que está embaixo. Essa ruptura radical entre essas duas esferas retira da natureza alguma possível consideração sua do tipo invólucro que conteria os "mundos", o Mundo por excelência, mais fundamental, mais verdadeiro, Mundo para além de todos os outros particulares ou a soma de tudo o que há. O que essa série de obras diz é que não existe um tal mundo comum, solo por onde as coisas passam e a luz atravessa livremente, mas que a natureza é também parcial, porque aquele que a sonha o faz com o material imaginativo que a sua realidade do lado de cá lhe oferece.

O mundo, fechado sobre si e estanque em si mesmo, para que exista só poderá contar com seus próprios recursos, dependerá dele a produção artificial da luz que lhe permitirá vir à aparição. Repetindo, não existe uma meta-luz, causa necessária e absoluta de todo aparecimento. Cabe ao homem somente a possibilidade de habitar o mundo que lhe é próprio; à natureza cabe o estatuto de hipótese de quem vive no interior do que não se comunica com nenhum "de fora".

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