sexta-feira, 13 de julho de 2018

Alguém disse "riqueza da vida interior"?

Há algo de falso na “vida interior”. Espécie de abrigo para certos "inconvenientes" da vida social a que nos submetemos, a vida interior, com toda a sua "riqueza", é como um biombo que nos afasta da realidade daquilo que somos, sobretudo nas considerações íntimas, nas variadas maneiras de se referir a si, pois se fundam sobre uma cegueira quanto a verdade daquilo que se é. Narciso é o maior dos iludidos. Por isso é preciso escapar do perigoso vício da profundidade e reconhecer que somos aquilo mesmo que aparentamos ser, que as nossas aparências revelam de nós mais do que gostaríamos de admitir: a nossa transparência nos denuncia. Portanto, não é "do lado de dentro" mas "do lado de fora" que está a verdade. O que “lá dentro” de nós nos contamos que somos é apenas o que pensamos ser. Há verdade nas aparências e não na interioridade dos nossos discursos mais íntimos, nosso "monólogo interior". O efeito dessa duplicação entre o que interiormente se pensa ser e a forma pela qual se dá o reconhecimento por parte do outro não passa de artimanha de afastamento da verdade de um desejo que se realiza no dia a dia. Os doces recantos da vida interior, os projetos grandiosos, os sonhos mais íntimos, tudo isso não é outra coisa que o esforço de nos refugiarmos de nossa própria pequenez. É vã toda tentativa de se decifrar com palavras, narrar-se “internamente”, contar para si acerca de si. Tagarela e barulhenta, a consciência é uma das vozes da loucura no silêncio da cabeça de cada um, voz regida sabe-se lá por que forças e que jamais irá se calar. A esse respeito, Žižek diz que

Nossa experiência mais elementar de subjetividade é a "riqueza da minha vida interior": é isso que "realmente sou", em contraste com as determinações e responsabilidades simbólicas que assumo na vida pública (pai, professor etc.). Aqui, a primeira lição da psicanálise é que essa "riqueza da vida interior" é fundamentalmente falsa: é um biombo, uma distância falsa, cuja função, por assim dizer, é salvar as aparências, tornar palpável (acessível a meu narcisismo imaginário) minha verdadeira identidade simbólico-social. Assim, um dos modos de praticar a crítica à ideologia é inventar estratégias para desmascarar a hipocrisia da "vida interior" e suas emoções "sinceras". A experiência que temos de nossa vida por dentro, a história sobre nós que contamos a nós mesmos para explicar o que fazemos é mentira; a verdade está, antes de tudo, do lado de fora, naquilo que fazemos. (...) As "histórias sobre nós que contamos a nós mesmos" servem para confundir a verdadeira dimensão ética de nossos atos. (Slavoj Žižek, Primeiro como tragédia, depois como farsa, P. 44)

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