Diferentemente de quem se fecha sobre si, o escritor é aquele que se “confunde” com aquilo sobre o que escreve para colher o que se lhe oferece. Se escreve sobre uma vivência, não o faz para recuperá-la porque fora deixada para trás e se perdera no tempo, mas porque, pela sua condição mesma de artista que jamais fala de si, ele é o locus de uma experiência maior, histórica, não individual. Enquanto sede de acontecimentos que o ultrapassam, é através dele que uma cidade e uma época se dizem. “Perder-se requer instrução”, escreveu Walter Benjamin. Como ainda ter a expectativa de que uma pessoa possa ter plena posse do que se passou (e se passa) consigo própria? Antes, é ela que pertence àquilo sobre o que escreve. Se fala acerca de um lugar ou de um tempo é porque, como uma espécie de prisioneiro, é o lugar e o tempo que a têm. As fronteiras da dimensão escritor escapam aos limites do eu. E se as impressões que tem podem ser vertidas em texto é porque há nele, escritor, certa atenção à abertura que nega o eu identificado com o si mesmo. Em suas narrativas, na linguagem utilizada, nota-se todo o esforço para que melhor se manifeste o que quer que se narre. Que aquele que testemunha e registra “apareça” o mínimo possível, como que para para não “atrapalhar” o que através dele, poeta, quer se dizer. Impossível posição esta do escritor! Como estar presente e ausente ao mesmo tempo? Uma "presença afastada", cuidadosamente planejada, ou, o que daria no mesmo, uma aproximação absoluta até se "perder" naquilo de que escreve para da melhor forma fazer o que lhe cabe, que é tão somente o testemunho silencioso que viabilize as coisas falarem em lugar dele falar. O escritor faz "autor" e "paisagem", "expressão" e "cena" se tornarem uma só coisa, faz sumir o que separa "sujeito", "objeto" e "linguagem".
sábado, 21 de dezembro de 2019
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Texto lido por Caetano Veloso no STF, no dia 04 de novembro de 2019.
“O governo dirá que não proíbe arte, que não está prendendo ou interrogando autores, que artistas são perfeitamente livres para expressar suas ideias, suas sexualidades e suas religiões, que não existe mais um departamento de censura, não existe mais o cargo de censor, que o Estado não pretende impedir a difusão de obra alguma. Ao contrário do passado, o Estado apenas se reserva o direito de não financiar artistas e temáticas que estejam em desacordo com o projeto que foi feito nas urnas pela maioria do povo. Ao contrário da censura, a suspensão do edital é democrática.
Pois é exatamente aí que vive a essência da censura, onde o cancelamento de um mero edital se iguala à censura mais escancarada e abre o precedente para que ela se institucionalize e que podemos não perceber a gravidade, o tamanho do risco, se cometermos o erro de encerrar o debate sobre a liberdade de expressão como um choque entre o Estado e os autores. E esse é um erro muito comum, porque em uma sociedade tão focada no indivíduo, no ego da autoria e na obsessão com o protagonismo do autor, é natural que a gente deposite o valor da liberdade de expressão no direito sagrado do indivíduo de dizer o que quiser, de artista ter o direito de veicular livremente suas ideias. Mas, como artista, eu digo que esse é um valor secundário, é o de menos no princípio da liberdade de expressão tão fundamental para a democracia. O artista, no fundo, é coadjuvante de uma história maior, pois o maior valor da liberdade de expressão é o público: é mais sobre o direito de escutar do que sobre o direito de dizer, é o direito do público, do espectador, ter acesso a ideias variadas, inclusive aquelas diferentes das que ele já conhece e aprova. E aí, na autonomia do público, no seu direito de ser exposto ao novo, ao desconhecido, que reside a importância cultural e democrática da liberdade de expressão.”
Pois é exatamente aí que vive a essência da censura, onde o cancelamento de um mero edital se iguala à censura mais escancarada e abre o precedente para que ela se institucionalize e que podemos não perceber a gravidade, o tamanho do risco, se cometermos o erro de encerrar o debate sobre a liberdade de expressão como um choque entre o Estado e os autores. E esse é um erro muito comum, porque em uma sociedade tão focada no indivíduo, no ego da autoria e na obsessão com o protagonismo do autor, é natural que a gente deposite o valor da liberdade de expressão no direito sagrado do indivíduo de dizer o que quiser, de artista ter o direito de veicular livremente suas ideias. Mas, como artista, eu digo que esse é um valor secundário, é o de menos no princípio da liberdade de expressão tão fundamental para a democracia. O artista, no fundo, é coadjuvante de uma história maior, pois o maior valor da liberdade de expressão é o público: é mais sobre o direito de escutar do que sobre o direito de dizer, é o direito do público, do espectador, ter acesso a ideias variadas, inclusive aquelas diferentes das que ele já conhece e aprova. E aí, na autonomia do público, no seu direito de ser exposto ao novo, ao desconhecido, que reside a importância cultural e democrática da liberdade de expressão.”
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quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Jacques Rancière e o paradoxo da democracia
Parece que existe um paradoxo no coração mesmo da ideia de democracia. Não é exagero afirmar que provém dele o mal-estar que hoje se vive. O livro de Jacques Rancière, Ódio à democracia, lança uma luz sobre essa questão ao traçar um interessante diagnóstico de um ódio a que se tem assistido ao Estado democrático. E se um tal ódio não é um fenômeno simples surgido do nada, talvez seja porque ele de algum modo foi sendo gestado ao longo das últimas décadas. Ora, em torno do termo “democracia” não existe propriamente um consenso, motivo pelo qual um esforço crítico de pontuar muitas das noções associadas a ele pode afastar algumas das sombras em meio às quais estão envoltos muitos dos impasses com que as pessoas têm se deparado no cenário político e social atual, sobretudo o brasileiro. Nas redes não é difícil encontrar textos e vídeos em que encontramos falas de ódio contra as instituições próprias aos governos chamados de democráticos.
Mas, afinal, qual é o paradoxo contido na noção de democracia? A princípio, poder-se-ia dizer que se trata de um sistema de governo que se pauta e promove as liberdades, no entanto não suporta os seus excessos e por isso os combate. Essa ilimitação dos desejos é o que os críticos da democracia consideram ser parte, só que às avessas, dos totalitarismos. Depois da Guerra Fria, tendo se tornando inútil o conceito de totalitarismo, para eles é a democracia que assume os seus traços. Nos anos 1990,
Eis algo que pode ser percebido nas críticas presentes nos discursos antidemocráticos. O problema é que ao combater tais “excessos”, isto é, a “desordem das paixões àvidas de satisfação” (idem, p. 14), não correria o risco de o governo democrático acabar por levar a cabo determinadas ações próprias àquelas outras formas de governo às quais ele se opõe e combate? O que se estaria assistindo é o deslocamento da ilimitação dos desejos de indivíduos consumidores atomizados para a ilimitação do poder de Estado. Ilimitação, excesso, seja de um lado, seja de outro, seriam a própria ruína da democracia.
Compreendendo que a democracia quando levada às últimas consequências encontraria o seu próprio colapso, ao mesmo tempo que as estratégias de contenção que visam estabelecer os seus limites para que ela própria seja viável implicam, paradoxalmente, a sua negação mesma, o que fazer então? Isso nos leva a perguntar: a democracia é realmente possível?
Aprofundemos no tema do declínio da autoridade para encaminharmos bem a questão que está sendo levantada, tema que, segundo uma determinada leitura do drama democrático apresentada por Rancière, apontaria para a “desordem das paixões àvidas de satisfação”. Perguntemos: como conciliar algum tipo de comando com igualdade? Em outras palavras, é possível produzir uma comunidade (o artifício comunitário) a partir de um amontoado de sujeitos iguais que a democracia pressupõe sem que se conte com um sujeito exceção dotado do poder de manter um grupo coeso? Por trás das falas dos manifestantes que vão às ruas expressar seu ódio às instituições que impedem o país de se tornar uma ditadura, nota-se o desejo por esse um dotado efetivamente de poder para “mudar”, afinal, segundo pensam, o Brasil, depois de catorze anos com o PT no governo, se desmantelou por completo. A revolta deles em relação à corrupção se alimenta desse horror diante do desmantelamento que nos últimos anos não cessou de ser noticiado. A palavra “caos”, desde a reeleição de Dilma Rousseff (quando a tensão política e a polarização se intensificaram), passou a abundar nos noticiários e nas redes sociais. Ora, o Bolsonaro pareceu ser, aos olhos de muitos, esse elemento exceção que traria a “ordem” de volta, mas com a condição de que fossem anulados os demais poderes que continuamente o atrapalhariam, como depois ficou claro. (Bolsonaro tem a palavra “messias” no nome e “mito” como forma de designá-lo.) Não é o fim da política? Nos termos de Jacques Rancière, sim, pois “a política se define na separação do modelo pastor alimentando seu rebanho.” (idem, p. 48) Isso torna claro a que espécie de angústia Bolsonaro se apresenta como resposta: diante do vazio (democracia é o “império do nada”), muitos clamam “pelo retorno do pastor perdido”.
Mas Rancière afirma que “a desmedida democrática não tem nada a ver com uma loucura consumista qualquer.” (idem, p. 56) A “perda da medida” que possibililita o desenvolvimento da democracia é de outra ordem. O que poderiam ser as relações de autoridade senão aquilo que se sustenta sobre a possibilidade de um título que confere ao seu portador um poder de não só conduzir mas de estruturar o corpo social, isto é, de fazer dele um “todo”? Ora, a “medida” cuja perda caracteriza a democracia é o que legitimaria semelhante “título”. Uma outra espécie de título, então, torna-se necessária, a que confere ao seu portador “uma superioridade que não se funda em nenhum outro princípio além da própria ausência de superioridade.” (idem, p.56) Essa inexistência de uma superioridade natural implica no seguinte: só existem iguais. E a Política nasce dessa constatação. Política, democracia e igualdade são termos que se implicam mutuamente, conclui-se. O autor escreve:
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domingo, 8 de setembro de 2019
Cometa Halley
Hoje eu acordei com saudades do cometa Halley. Durante todo um mês daquele ano não se falou em outra coisa que no tal do cometa. Era cometa Halley pra lá, cometa Halley pra cá... Até na novela se ouvia falar dele. Para um menino como eu naquela idade, aquelas semanas foram vividas como um acontecimento cósmico, como se estivéssemos todos mais próximos do céu, nos juntado a ele. E hoje eu acordei com saudade daquele cometa, que, se dizia, só retornaria 75 anos depois, mais ou menos o tempo de uma vida. Fiz, ainda naqueles anos, os cálculos e percebi que, caso conseguisse vê-lo, eu estaria diante de algo que só aos 84 anos de idade eu veria novamente. Senti-me, por um lado, feliz em pensar que havia chances de acompanhá-lo na sua passagem seguinte; por outro, triste em saber que os mais velhos à minha volta não teriam aquela sorte porque já estariam todos mortos. E por dias o cometa afetou algumas considerações que eu fazia: à luz de sua duração projetada pela minha imaginação, eu estava cercado de gente morta. No outro extremo, o cometa seria a testemunha muda dos meus dias de criança. O Halley me pareceu ser, portanto, o ponteiro de um gigantesco relógio, cuja volta completa demora os tais 75 anos, o relógio dos relógios, sem as tradicionais divisões que fatiam os nossos dias em condicionados intervalos idênticos: o seu tempo vasto ligava a minha vida de ponta a ponta, como também me permitia vislumbrar uma grandeza cósmica inédita. Mas vendo ou não o tal cometa, isto é, se as nuvens me permitissem liberando a minha visão, enxerguei nele como que uma carta de mim para mim. A experiência de ver o cometa pela segunda vez, quase oito décadas depois e já com uma vida inteira atrás de mim, seria o ponto que coincidiria com a experiência infantil de quando ele me sobrevoou riscando o meu céu. E o que o meu cometa me dirá? Eu hoje acordei com saudades do cometa Halley.
quarta-feira, 10 de julho de 2019
Democracia e desesperança
O que teria ocorrido entre o final dos anos de 1960 e início de 1990 que as músicas Space Oddity, de David Bowie, e Man in the box, da banda Alice in Chains, tão exemplarmente exprimem? Vejamos dois pequenos trechos de ambas. O da primeira: “This is Major Tom to Ground Control / I'm stepping through the door / And I'm floating in a most peculiar way / And the stars look very different today…” O trecho da segunda: “I'm the man in the box / Buried in my shit / Won't you come and save me? / Save me…” Enquanto que em Bowie vemos alguém em pleno vigor de um movimento de saída do “mundo”, de abandono da gravidade que faz o corpo pesar, de abertura para um novo olhar que vê as estrelas na escala de quem, como elas, flutua num espaço indeterminado, Man in the Box nos mostra o homem enclausurado, preso à sua própria merda e que clama por ajuda, não a que o “mundo” poderia oferecer, mas outra espécie de ajuda, justamente uma que o “salve”. O que teria havido, então, entre estes anos, que transformou o fascínio pelo espaço, próprio àqueles que desejam o infinito, na claustrofobia de quem se encontra fechado dentro de uma caixa? Man in the box foi lançada no ano de 1990, ano seguinte à queda do muro de Berlim e no qual o colapso da União Soviética já dava seus sinais. Não deveria ter sido este período o apogeu do que até então não passava de uma promessa pairando nos ares daqueles “anos de ouro”, promessa que marcou toda a década em que o homem foi à lua? O que no desenrolar desta trajetória foi frustrado? Esperou-se pelo que não se devia esperar? Ou alguma força exterior ao impulso emancipatório mergulhou todo o otimismo num caldeirão de tristeza? Parece que o “fim da história”, a hegemonia da democracia enfim conquistada a duras penas teve o seu custo psíquico: a desesperança.
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terça-feira, 29 de janeiro de 2019
Falsa questão
Entre as questões, aquelas relativas à existência de Deus são certamente as menores que há. Importa saber, antes, se quando eu já estiver morto ainda chagarão até mim o brilho das coisas que brilham e as cores das coisas com cor. Meus olhos são corpo, logo de duração bastante curta. E se tais fenômenos que justificam a vida não me chegarem por estar, eu, privado dos meios adequados para percebê-los, por que deverei me considerar que ainda seja alguma coisa, participante do Ser em algum grau? Fica claro que a noção religiosa de "olhos do espírito" não passa de uma quimera. Um colorido, mesmo que desbotado, o borrão dos míopes ou um lampejo qualquer valem mais que a vida do espírito e toda a eternidade.
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