quinta-feira, 29 de maio de 2025

Liberdade é o mesmo que livre arbítrio?

AS RESPOSTAS à pergunta "o que é liberdade?" geralmente partem, mesmo que de forma vaga, de alguma noção de "livre escolha". Livre seria todo aquele com capacidade de escolher o que quer que se lhe apresente. Mas se essa sobreposição entre liberdade e livre escolha acabou por se tornar um pressuposto do senso comum é porque, antes de tudo, foi no campo da política onde se realizou tal feito. Como, então, pensar liberdade sem relacioná-la à livre escolha? Trata-se aqui de um desafio enorme. Mas, revisitando as minhas anotações de um curso que fiz sobre Espinoza - sim, eu guardo essas coisas e constantemente as consulto - encontrei a noção de "atividade".

O uso do termo "atividade" em vez de "liberdade" se dá justamente em razão do fato de que para o filósofo a liberdade não existe se entendida como livre arbítrio. Portanto, é um estudo acerca da noção de "atividade" em Espinoza que nos permitria colocar em xeque a noção de liberdade entendida como livre arbítrio.

De imediato, algumas considerações precisariam ser feitas das consequências dessa separação: se liberdade não é escolha, como pensar uma democracia? E que outra economia corresponderia à hipótese dessa nova política?

Para Espinoza, relacionar tão naturalmente liberdade e livre escolha resulta do primeiro e mais baixo dos três gêneros de conhecimento: a imaginação. Eis aqui o que caracteriza o estado de servidão: estar submetido ao modo de pensar que se limita ao gênero da imaginação, que pode ser definido fundamentalmente pela inversão entre causa e efeito. A ilusão do homem que pensa agir segundo seu livre arbítrio consiste em crer ser ele próprio sujeito, causa das ações que realiza. O que esse homem ignora é que aquilo que ele faz é efeito de causas que lhe escapam o controle. Eis a verdade: são forças externas que, ultrapassando os indivíduos, "de fora" determinam suas vidas, apesar de eles as experimentarem como resultado de suas escolhas.

Tais forças externas que conduzem os homens, ainda segundo Espinoza, são as "forças afetivas". Cabe aqui um trecho da Ética citado por Deleuze em "Spinoza e os signos": "É assim que um menino pequeno julga desejar livremente o leite, um jovem em cólera querer a vingança, e o medroso a fuga. Um homem em estado de embriaguês julga também que diz por uma livre decisão da alma aquilo que, fora dessa situação, preferiria ter calado."

Mas o que viriam a ser "forças afetivas"? "Afecção" é o efeito do encontro entre os corpos, o que resulta do choque entre dois corpos, as marcas que um corpo deixa no outro. O ponto de vista do homem submetido à servidão, cujo entendimento se limita ao gênero de conhecimento da imaginação, ignora as forças afetivas determinantes: considera ser ele próprio origem de suas ações quando, na verdade, ele é efeito de forças que estão para além de seu controle.

As afecções são o que sucedem os encontros dos corpos. Mas há duas espécies de encontros. Há os bons e os maus encontros. Os bons encontros se caracterizam pelo aumento da potência do corpo, do que resulta em alegria; ao passo que os maus encontros são aqueles que diminuem a potência do corpo, sendo a tristeza o seu resultado. As potências que tanto podem ser aumentadas quanto diminuídas dizem respeito à maior ou menor capacidade de agir e de pensar. Em outros termos, um corpo potente e alegre é o corpo com maior capacidade de agir; uma alma potente é aquela com maior capacidade de pensar. 

Aqui chegamos à questão da atividade. Sair do estado de servidão implica, necessariamente, em ultrapassar o gênero do conhecimento da imaginação. Para tanto, é preciso separar "liberdade" de "livre escolha", já que esta última é determinada pelos afetos. Considerar-se livre porque se acredita que as escolhas feitas foram espontâneas, que não resultam de uma causa fora do corpo que realiza a ação, é ignorar o fato de que o indivíduo, enquanto corpo, está à mercê dos encontros. Só saímos da passividade quando ultrapassamos as ideias da imaginação. E falar de liberdade é falar de atividade; falar de atividade é falar de potência, tanto do corpo quanto da alma.

Disso podemos afirmar que a liberdade enquanto atividade (e não enquanto livre escolha) e a potência própria da atividade como o aumento da capacidade de ação dependem dos encontros. A noção de livre escolha se origina da imaginação porque tem como pressuposto um indivíduo isolado de onde todas as suas ações partiriam dele de maneira espontanea (efeitos sem causa); já a atividade, para que esta seja possível, os encontros felizes se fazem necessários: liberdade depende do outro com o qual meu corpo se encontra e de cujo encontro ocorre o aumento de minha potência.

Penso que Espinoza, pelas razões expostas acima, é um autor importante para se pensar a questão da coletividade, já que é dela de onde pode provir a liberdade. Em outros termos, qualquer coletividade só seria viável se liberdade não fosse mais entendida como livre arbítrio, isto é, se sairmos do gênero mais baixo de conhecimento que é a imaginação. Tomemos o exemplo das cidades e seus planejamentos. O que seria uma boa cidade senão aquela que promovesse os bons encontros entre seus cidadãos, encontros que os potencializem, que ampliassem suas capacidade de agir e de produzir.

Cabe aqui uma última citação a respeito da atividade de organizar os bons encontros como meio do aumento de potência. Deleuze escreve: "Dir-se-á bom (ou livre, ou forte) aquele que se esforça, enquanto persiste em si mesmo, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com as relações combináveis, e, através disso, se esforça por aumentar a sua potência. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer os efeitos, mesmo quando se lamenta e acusa, sempre que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria fraqueza."

domingo, 25 de maio de 2025

Fim do Mundo

As formas de considerar a realidade podem ser exploradas através de obras que tratam do tema de seu fim, da iminência de sua mais radical e absoluta dissolução. Há livros e filmes nos quais somente as catástrofes, com poder de destruição de cidades, ou mesmo do planeta inteiro, constituiriam acontecimentos que efetivamente poriam termo à realidade. Tais formas identificam a realidade com o “mundo material”. Filmes hollywoodianos de “fim de mundo” parecem corroborar isto. Cometas que rumam na direção da Terra, terremotos, mudanças climáticas, etc., encarnam esse elemento externo que “de fora” ameaça a integridade do “mundo”. Mas o sentido de “realidade” não se esgota no pressuposto que a identifica a “mundo material”. Ora, outra sorte de eventos que expõem a fragilidade do “mundo” constitui uma interessante maneira de investigação da realidade em sentido mais amplo. É possível compreendê-la através da consideração do que a põe em xeque a partir dela mesma. Exemplo disso: um objeto corriqueiro é deslocado, um gesto comum é realizado sem propósito, uma situação trivial mas fora de contexto ou repetida à exaustão. O conto A gargalhada, de Orígenes Lessa, por exemplo nos apresenta a relação entre o trivial e a sustentação da realidade, que se revela frágil: algo banal como uma gargalhada, quando deslocado de seu contexto ou desvirtuado de seus fins esperados, pode destituir a realidade de sua substância expondo a sua inconsistência. Assim, a realidade, que se apresentava firme e sólida, existente em si e por si mesma, revela-se como resultado de uma configuração psíquica específica.

A opacidade do tempo presente

O livro "O ponto de vista do outro", de Jurandir Freire Costa, livro que trata da obra de Philip K Dick, traz a expressão “parábola do presente”, que, segundo Costa, caracteriza a literatura de ficção de Dick. Mas arrisco a dizer que tal expressão é definidora de toda obra de ficção científica. O ponto é o seguinte: a questão tratada por esse tipo de ficção não é o tempo futuro ou passado, mas o tempo presente em que se vive. Ele escreve: "o presente não é um simples estágio do que está por vir, o futuro não são pedaços do “hoje” projetados num indefinido amanhã, e o passado não é um fantasma que só existe na narração retrospectiva. (...) Dick tem outro objetivo. Com a ideia de “parábola”, quer trazer à tona o núcleo inquietante do que nos é mais familiar. O outrora, o hoje e o amanhã são dimensões do tempo usadas para revelar facetas da realidade que, de hábito, desconhecemos." (Pag. 139) Em outras palavras, há um o núcleo inquietante no seio da realidade que nos cerca. E mais: é justamente esse núcleo que torna opaca a experiência mesma do presente vivido. Não é disso que o texto de Freud Das Unheimliche (1919) trata? Como abordar tal núcleo? Como falar dele? Ora, as estórias de ficção científica constituem uma estratégia que visa permitir vir à tona aquilo que "a olho nu" – isto é, sem o recurso da ficção – não somos capazes de enxergar. As obras de ficção científica são um meio para isso. Por este motivo, associar ficção à mentira é um grave erro. Tanto um cenário futurista quanto o de um tempo já passado, ambos não são outra coisa senão formas para que o próprio tempo presente venha à tona. Cria-se estórias futuristas para que, por meio desse futuro ficcional, as dimensões ocultas do presente possam se fazer visíveis, consequentemente disponíveis de serem abordadas, pensadas, elaboradas. O futurismo é um recurso para que o próprio presente se diga. Jurandir continua: "Ele [Philip K Dick] não define futuro como algo que está “adiante”, “na frente”, do “aqui e agora”. O futuro, em seu entender, não é um tempo espacialmente estendido como pontos numa linha que vai de B a Z. A ideia de futuro como sucessão, como sequência de instantes que se desdobram ao longo de um suporte etéreo é descartada por ele. Futuro é a temporalidade como concomitância, como simultaneidade de eventos. É o “depois” que está ao lado do agora, e que só é “depois” no sentido de ser aquilo que não era percebido por estar fora do foco da consciência. Futuro é uma maneira de dizer que, se deslocarmos a atenção consciente para o que existia em paralelo sem ser observado, poderemos ver o mundo e o sujeito de um prisma desconhecido. Para Dick, dar um passo adiante, um passo atrás ou mesmo um passo lateral é o mesmo que girar um caleidoscópio apontando-o para cima, para baixo ou para os lados. O que vemos é sempre um novo arranjo dos elementos que já estavam lá." (Pag. 143) Ou seja, trata-se de um deslocamento do olhar capaz de nos fazer ver o que não pode se mostrar por outras vias. Tenho os filmes 2001 Uma odisseia no espaço e Matrix em mente mas que por ora não irei comentar para não me estender demais.

sábado, 29 de março de 2025

Os mortos-vivos e suas lições

Foi em razão de uma forte gripe que me impediu de sair de casa ontem e hoje que resolvi assistir à série The Walking Dead. Gosto de filmes de mortos-vivos, pois considero que há duas lições fundamentais a serem extraídas desse tipo de produção.

Antes, é preciso lembrar que a questão central de tais filmes não são os mortos-vivos propriamente, mas a situação peculiar na qual o mundo se encontra. Dado tal contexto, os sobreviventes, aqueles que ainda trazem em si a substância de sociabilidade, como eles convivem? O tipo de sobrevivência em jogo, portanto, não é tanto escapar das hordas repugnantes que perambulam sem sentido ou finalidade pelas ruas. O desafio é a convência entre eles próprios, os ainda vivos. É da convivência entre os vivos que a sobrevivência depende. Essa é a primeira lição.

A segunda questão é a seguinte: as pessoas insistem com hábitos e modos de ser próprios de um mundo que não existe mais. O personagem Rick Grimes, por exemplo, não tira o seu uniforme de policial mesmo vivendo numa realidade em que sequer existe Estado. Será ele uma espécie de Jacobina, personagem do conto O Espelho, de Machado de Assis, alguém que só não sucumbe ao vazio porque, em meio à solidão, se veste com a farda de Alferes (alma exterior), recuperando, desta forma, sua identidade prestes a ir embora? Ou um Robinson Crusoé, que quanto mais busca impor à ilha os símbolos de sua antiga realidade europeia mais a ilha o vence?

As relações entre homens e mulheres, as divisões do trabalho, os preconceitos raciais, etc., tudo isso parece resistir e perdurar num tempo em que tudo já desmoronou. Esses filmes nos mostram essa dificuldade de as pessoas reinventarem suas formas de estarem no mundo, de reinventarem a si mesmas. Esse ponto cruza com o primeiro, uma vez que a convivência da qual depende a sobrevivência só é possível por meio da invenção de um outro modo de ser e de estar. Em suma, é a situação em que é necessário viver de outra forma para que um outro mundo possa surgir. Mundo não é outra coisa que as pessoas, suas relações, seus vínculos.

Dito isto, o que é um morto vivo? É um ser entre duas mortes, a simbólica e a biológica. Algo naqueles corpos insiste, os torna famintos de cérebro, sangue, carne. No entanto, simbolicamente não existem, uma vez que não possuem identidade, não criam laços, não estabelecem vínculos. Resumindo, são seres sem Mundo. O morto-vivo é a materialização de uma pulsão cega, de uma força simultaneamente além e aquém de todo e qualquer enquadramento cultural e social.

sexta-feira, 28 de março de 2025

O chope e o mundo

O jornalista Pedro Doria disse ontem, no seu Ponto de Partida (canal Meio), que “a conversa sobre política precisa voltar a ser um papo entre amigos que discordam, riem, erguem o copo de chope e voltam a conversar.” O problema de tal afirmação não seria a pouca (ou talvez nenhuma) possibilidade de isso voltar a acontecer. O problema é que o assunto “política” não simplesmente se encontra no hall dos assuntos possíveis, ao lado daqueles sobre futebol, música, novela, etc.

O filme Rashômon (1950), de Akira Kurosawa, nos mostra que o buraco é bem mais em baixo. De que trata o filme? Ao assisti-lo, acompanhamos quatro narrativas a respeito de um evento: um ladrão avista um casal numa estrada e, tendo desejado a mulher, segue-o, faz uma emboscada e amarra o marido para possuir sexualmente a sua esposa. Ao término da cópula, ambos os homens duelam e o corpo do marido é encontrado morto mais tarde. Ora, essa cena é descrita pelos três personagens envolvidos e por um quarto homem que assiste a tudo mas a partir de “fora” por se encontrar escondido na mata.

O primeiro a dar a sua versão é o ladrão, que afirma ter realizado um duelo justo imediatamente após o ato sexual consentido, duelo no qual ele mata o marido da mulher. A mulher é a segunda a dar a sua versão, na qual é ela quem mata o próprio marido por não suportar a vergonha encarnada no olhar que ele lança sobre ela após a consumação do ato sexual com o ladrão. A terceira versão é a do marido morto. De acordo com a narrativa de seu fantasma, não suportando a humilhação por que passou, é ele quem tira a própria vida com o punhal. E há o quarto relato, o do homem que não participou da cena mas que viu tudo “de fora”, relato no qual a mulher acusa a ambos os homens de serem fracos e pouco viris, instigando-os a lutarem entre si até a morte se quiserem “tê-la” como esposa.

O fato como realmente ocorreu foi “melhor” visto (logo, melhor contado) por este quarto personagem do que pelos demais justamente por não ter a sua perspectiva “afetada” pela parcialidade própria daqueles que participaram da cena, isto é, que se encontravam “dentro” da cena? Logo, podemos falar de uma impossibilidade estrutural das narrativas em reproduzirem a realidade proferidas por aqueles que estão “dentro” da cena? Em outros termos, estaria o “todo” da cena inacessível àqueles que participam dela, em compensação acessível a quem estaria “fora” dela?

E se a verdade deste episódio se encontra além de toda interpretação, sendo mera fantasia qualquer ideia de uma posição externa a partir da qual seria possível ver as coisas como realmente são? O filme nos coloca diante de diferentes versões. Mas a nossa questão é a seguinte: cada narrativa do ocorrido não reflete simplesmente diferentes percepções que poderiam ser conciliadas pela verdade do fato. E não se trata, aqui, nem de um relativismo (não há realidade, mas apenas versões e narrativas), tampouco de um dogmatismo (há uma realidade verdadeira, logo, só pode haver uma versão “adequada”), mas a compreensão de que toda narrativa é uma tentativa de encobrimento de um núcleo traumático. (No caso do filme, o núcleo traumático encoberto pelas diferentes versões é o progressivo enfraquecimento da autoridade masculina através da afirmação do desejo feminino.)

Mas o que tudo isso tem a ver com a otimista afirmação do jornalista Pedro Doria e seu desejo de que retomemos “a conversa sobre política”, que, mesmo discordando, possamos rir novamente, erguer “o copo de chope” e voltar “a conversar”? O começo de Rashômon faz a síntese: homens conversam a respeito de algo que é mais terrível que a fome e a guerra. O que poderia ser isto? Ora, é a ordem simbólica que se encontra em vias de desintegração, aquela na qual não apenas todo pacto social se sustenta, mas também a que permite o compartilhamento de experiências. O que a existência de quatro versões não conciliáveis acerca de um evento revela é precisamente isto: não vemos (experimentamos) mais as mesmas coisas; os "fatos" estão perdidos. Eis, portanto, o nosso drama, o ponto traumático hoje: não há mais uma experiência comum. Se formos sentar para conversar, certamente não será para beber chope, mas para pensar a dissolução de nossos pactos. O pacto do “chope” não segura um mundo em desintegração.