COM ESTES ídolos antigos que perduram até os nossos dias por meio de rituais dos mais variados que os atualizam, dificilmente poderíamos esperar uma valorização da superfície, do que é superficial. Com estes pilares de sustentação, sofremos a exigência do aprofundamento e sonhamos a leveza do raso. E como sair do primeiro em direção ao segundo? Na literatura esta impotência foi destacada por Michel Tournier. O trecho de seu livro selecionado hoje consiste justamente num elogio à superfície. O nosso vício na profundidade desencadeia em nós certas preferências cuja libertação teria implicações naquilo que somos. Preferências do tipo do entendimento em detrimento ao sensível, da verdade oculta em detrimento às impressões aparentes, do eterno em detrimento ao provisório, do sentido das palavras ditas em detrimento à voz de quem fala, saber quem está comigo em detrimento a um bom momento compartilhado, do sexo em detrimento ao corpo e pele. À luz destas considerações, filósofos de certas escolas, religiosos, maus amantes e canalhas não distinguem de natureza.
“(...) a noção de profundidade, de que nunca até agora pensara em estudar o uso que se faz em expressões como ‘um espírito profundo’, ou ‘um amor profundo’... Estranha prevenção essa que valoriza cegamente a profundidade à custa da superfície e que faz com que o ‘superficial’ signifique não ‘de vasta dimensão’, mas sim de ‘pouca profundidade’, enquanto ‘profundo’ significa, pelo contrário, ‘de grande profundidade’ e não de ‘fraca superfície’. E, no entanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor – caso possa ser medido – pela importância da sua superfície do que pelo seu grau de profundidade. Porque eu meço o meu amor por uma mulher pelo fato de que eu amo igualmente as suas mãos, os seus olhos, a maneira como anda, a roupa que usa, os seus objetos familiares, aqueles que a sua mão aflorou, as paisagens onde a vi evoluir, o mar onde se banhou... Tudo isso é bem a superfície, parece-me! Enquanto um sentimento medíocre visa diretamente, em profundidade, o próprio sexo e deixa tudo o mais numa penumbra indiferente.” (Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico - Michel Tournier)
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Como você colocou acima, o culto à profundidade representa a negação das sensações em prol da reflexão. Devemos raciocinar, refletir, não sentir.
ResponderExcluirDe fato, temos a tendência de desvalorizar a aparência (sensação) para apreender a essência; aí se insere Platão, com o mito da caverna, exortando-nos sobre a falsidade do que percebemos superficialmente (sombras).
No entanto, a realidade é também a superfície, aquilo que apreendemos inicialmente. Na verdade, essa dicotomia entendimento/sensibilidade afasta-se da percepção integral, na medida em que esta utiliza-se tanto da superficialidade quanto da profundidade, ou seja, não se trata de oposição (exclusão), mas, sim, de complementariedade.
Gostei muito da sua percepção sobre o tema!
O que eu gosto na arte pictórica é o seu poder de fixação de uma aparência numa superfície plana, de apreensão de uma imagem que se oferece aos olhos. Há nisso um esforço de captura (e não de aprisionamento) do que há de essencial à própria aparência. A pintura desmente Platão, pois não trata essência e aparência como termos contraditórios. Isso corre principalmente com as pinturas não representativas, isto é, aquelas cujo tema é livre do modelo, autônomo em relação ao objeto representado.
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