sábado, 25 de julho de 2009

Entre dois mundos

COM UMA capacidade única de dizer o que até então parecia ser impossível de ser posto em palavras, bem no início do primeiro volume Proust descreve o momento entre o sono e a vigília: já não se dorme mais nem ainda se está acordado. Esta zona intermediária de indistinção e de suspensão do tempo tem a memória como o seu correlato de ordem. Inicialmente as épocas vividas aparecem a ele (narrador) de modo simultâneo e, em seguida, em sucessão, como que para tirá-lo do vazio e repor as coisas nos seus devidos lugares. Com isso é recriado o seu mundo e o seu tempo, que insiste colocando os já idos no passado. A sensação de existência, tão comum a tais momentos que nos pegam de surpresa (ou nós os pegamos?), é a experiência da negação de parâmetros localizadores nos eixos possíveis. Tais localizadores, artifício que forja a irrealidade das distinções na realidade do indistinto é o que dá consistência e projeta finalidades. Em outras épocas, chamou-se isso de essência.

"Assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas; mas aí a lembrança – não ainda do local em que me achava, mas de alguns outros que havia habitado e onde poderia estar – vinha a mim como um socorro do alto para me tirar do nada, de onde não poderia sair sozinho; passava em um segundo por cima dos séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, depois de camisas de gola virada, recompunha pouco a pouco os traços originais de meu próprio eu." (Marcel Proust, No Caminho de Swann, Pp. 23)

5 comentários:

  1. Comentando o trecho lááá embaixo, sobre Poe e Machado.

    Essa questão da essência que vem de fora, da
    dependência do outro para legitimar nossa existência, essa essência que dá sentido, ainda que de maneira fantasiosa, às nossas vidas, pode ser percebida naquela passagem de "Lições...", do Corção, em que o personagem diz numa determinada passagem: "Agarrei-me ao título de doutor". Neste momento o personagem está completamente esvaziado de sentido e, desesperado, agarra-se à última reserva de significação que lhe confere uma "realidade" confortável diante do nada da existencial.

    ResponderExcluir
  2. Há dois caminhos: ou se agarra a um nome previamente estabelecido pelo Outro ou se cria o próprio espaço de atuação.

    ResponderExcluir
  3. Adorei o trecho! A noção (consciência) do passado (e da existência do futuro) distingue o ser humano dos outros animais.
    O narrador aborda esse caráter instintivo (animal) associando-o ao primeiro instante, no qual não há lembranças (noção do passado).
    Os bichos são presos (condicionados) ao presente, não tem liberdade de atuação (a natureza o determina); o homem, por sua vez, tem o que Rosseau chama de "perfectibilidade", característica que lhe permite evoluir.

    ResponderExcluir
  4. A sensação de existência, tão comum a tais momentos que nos pegam de surpresa (ou nós os pegamos?), é a experiência da negação de parâmetros localizadores nos eixos possíveis. Tais localizadores, artifício que forja a irrealidade das distinções na realidade do indistinto é o que dá consistência e projeta finalidades. "Em outras épocas, chamou-se isso de essência."

    Isso os localizadores ou isso a sensação de existência? "Em outros tempos" só faz se forem os localizadores, me parece, mas não custa nada perguntar.

    http://quandoeusaidecasaminhamaemedisse.blogspot.com/

    ResponderExcluir