sexta-feira, 10 de julho de 2009

A Mulher, a Modernidade e o Artifício

A SEGUIR, um magnífico trecho de um texto de Charles Baudelaire, intitulado “Sobre a modernidade”. Além de haver aqui um elogio ao artificial, também entrevemos a relação necessária entre a beleza e o artificio da criação de uma boa composição. Eis o que caracteriza a indumentária feminina. Mas por que modernidade no título? Ora, esta consiste no rompimento com o ideal divino e com qualquer realidade transcendente, rompimento e aquisição de indepemdência com o que preexiste à atuação propriamente humana. Com efeito, o prazer estético não provém da contemplação do eterno, mas sim do que é provisório, fugidio na eternidade do seu instante. Da natureza nada podemos esperar que não seja o caos, a desordem, o acaso. Como a mulher, cuja beleza decorre de uma montagem, a arte nada deve à natureza mas somente ao artista que, como um Deus secular, é capaz de criar o novo, fazer com que haja luz lá onde só existem trevas.

“Tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela própria; e os artistas que se dedicaram particularmente ao estudo deste ser enigmático adoram finalmente todo o mundus muliebris quanto a própria mulher. A mulher é, sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas e reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela aparição de uma beldade, separar a mulher de sua indumentária? Que homem, na rua, no teatro, no bosque, não fruiu, da maneira mais desinteressada possível, de um vestuário inteligentemente composto e não conservou dele uma imagem inseparável da beleza daquela a quem pertencia, fazendo assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisível?”


3 comentários:

  1. Muito interessante a ligação que fez entre os adornos da mulher e a arte.

    A idéia de que a natureza seria perfeita (cosmos estóico) é refutada por Nietzsche, que, como você, compreende o mundo como caos: "Sabem o que é o 'mundo' para mim? Querem que o mostre em meu espelho? Esse mundo é um monstro de forças, sem começo nem fim, uma soma fixa de forças, dura como bronze [...] um mar de forças tempestuosas, um fluxo perpétuo." (Além do bem e do mal, tomo I, livro 2, § 51).

    E quanto à arte, afirma o filósofo que é ela a "força ativa", distinguindo-se da ciência e da filosofia (forças reativas).

    Mulher adornadas, sem dúvida, enquadram-se nas chamadas "forças ativas": representam a arte, "enunciam valores [estéticos] sem discutir", prescindem de motivação, e podem ser apreciadas ao lado de outras sem precisar refutá-las.

    Afinal, a arte é "ativa" justamente porque permite esta convivência: Bach, Caetano e The Doors convivem harmoniosamente (arte). Já a ciência, que se propõe definir o que é verdade, precisa refutar (reagir) para se firmar: Newton destroi Ptolomeu ao enunciar a "verdade".

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  2. Achei excelente a citação do Nietzsche. A arte é o exemplo mais puro dessa força ativa de que nos fala. Cria o novo sem esperar ser aceita por qualquer instância, seja de ordem transcendente ou social. A sua grandeza reside no fato de não ter finalidade alguma.

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