terça-feira, 14 de julho de 2009

O espelho de Machado

A IDÉIA de trazer um pequeno fragmento do conto O espelho de Machado de Assis veio a partir do Edgar Allan Poe postado ontem. Ora, sabe-se que o personagem deste conto havia se tornado alferes, e por causa disso o motivo de orgulho da família. Tal reconhecimento por parte de alguns - e inveja, de muitos outros - insuflava a sua alma (exterior, segundo a filosofia do conto). Todos estavam sendo testemunhas do que ele agora era, com isso modificando a sua essência sem que ele percebesse: a presença alheia tornara-se indispensável para sentir-se vivo. Como vinha de fora, de seu posto militar, esta sua nova essência adquiria solidez no outro. Entre o patrão (o Estado) e os seus familiares, temos um personagem reduzido à pura função que exerce. A angústia se inicia quando a ausência destes coadjuvantes o conduz à experiência de uma solidão corrosiva: seu ser vai embora junto à saída dos outros da casa. (Afastado dos outros, afastado de si.) No auge do desespero o tempo se torna sensível nas sucessivas batidas da pêndula do velho relógio, trazendo à superfície a negatividade (que o nada representa) recalcada pela presença alheia. As identidades cuja existência depende do outro tem na solidão uma poderosa inimiga. Solução para o tormento de sua alma: duplicação de si em si mesmo através do recurso do espelho mediando a ambos, no ponto exato entre aquele que vê e aquele que é visto. Com o reflexo fardado de seu posto no espelho, a sua imagem é recomposta e a calma retomada.

"As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. (...) Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte alguma... Riem-se?" (Machado de Assis – O espelho)

2 comentários:

  1. Que interessante! Escrevi sobre a solidão recentemente, ao comentar "Eleanor Rigby" e "Dança da solidão"; mas acabei concluindo o texto ressaltando o caráter criativo da solidão.

    O Alferes não consegue ficar só: não é qualquer um que existe (consegue existir) apesar da ausência dos outros.

    A arte, a meu ver, demanda este isolamento, que proporciona a introversão.

    Como diz Calvino, "o temperamento saturnino é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores (...). É certo que a literatura não existiria se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão..."

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  2. Ter a solidão como amante é bom. Assumi-la de vez é que é difícil.

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