segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Foucault e o liberalismo econômico

Em O nascimento da biopolítica Michel Foucault pergunta: a que se refere o termo homo oeconomicus? Aos indivíduos? Sim, responde, mas desde que em sua compreensão se dê ênfase à dimensão de suas condutas. Ou melhor: homo oeconomicus é, antes de tudo, uma perspectiva que se tem sobre as condutas dos homens e ao mesmo tempo um modo de consideração destes enquanto seres de condutas determinadas. Dito de outra maneira, o homo oeconomicus é uma grade que permite entender certas condutas como racionais enquanto que outras não. Sendo o homo oeconomicus o ponto em que a análise econômica e uma psicologia do comportamento se encontram, observa-se uma ampliação, ou mesmo generalização da análise econômica a todas as esferas da vida; toda conduta, na medida em que se espera dela um enquadramento nos preceitos do que se entende por um “comportamento racional”, é objeto de uma análise econômica.

Qual é a prescrição pressuposta pela análise econômica? Alocação ótima de recursos raros a fins alternativos. Isso nos permite pensar que o homo oeconomicus, objeto da análise econômica, é aquele que aceita “a realidade como ela é”, no sentido de que a sua conduta, sendo racional, é precisamente sensível às modificações do meio, que a elas ele responde da melhor maneira. Enfim, trata-se do homem adaptável. Integradas à economia, as técnicas comportamentais visariam promover essas respostas ótimas.

Mas além da adaptabilidade do homo oeconomicus, de seu comportamento racional, calculável a partir do princípio econômico, ele é justamente quem obedece ao seu interesse. É nele, esse sujeito de interesse, que o Estado não deve tocar mas “deixar-fazer” (laissez-faire). E se ele não é “tocável” pelo Estado, no entanto ele é manejável por técnicas comportamentais, o que é o mesmo que dizer que ele é governável, no sentido de que as suas condutas poderão ser conduzidas. Melhor dizendo, o meio a que seu comportamento responderá sofrerá ações sistemáticas por parte do governo: é indiretamente que o Estado alcança os indivíduos através de um poder cuja natureza não é propriamente repressiva mas sim normalizadora. Em suma, o homo oeconomicus é um tipo de sujeito foco de ação de uma arte de governar regulada de acordo com o princípio econômico.

O homo oeconomicus, mesmo ainda não conceitualizado, já aparece na teoria do sujeito do empirismo inglês, que pela primeira vez não o compreende por uma suposta liberdade, por uma oposição da alma ao corpo ou presença de um núcleo de concupiscência marcado pelo pecado. Para o empirismo inglês sujeito é o que aparece como o lugar em que ocorrem as opções individuais intransmissíveis. Por exemplo, a não-dor é preferível à dor. Por que motivo? Porque o sentimento pessoal de dor e de não-dor, do que é doloroso e do que é agradável é que será o princípio de toda opção. Por exemplo, quando me é dado optar entre o corte do meu dedinho e a morte de outrem, nada poderá me forçar a considerar que o corte do meu dedinho seja preferível à morte de outrem. É esse o sujeito: ponto de partida desse tipo de vontade (a que chama de interesse) e instância dotada de sentimento pessoal intransferível.

Para tal sujeito de interesse não existe transcendência. Como crêem os teóricos empiristas e liberais, são forças que ultrapassam os sujeitos – mas não o mundo – que harmonizam seus interesses entre si. O que resulta do encontro harmônico de tais interesses, infinitamente variados e próprios a sujeitos tão diferentes, escapa a todos os envolvidos, é involuntário, indefinível, não-totalizável. É a isso que se refere a expressão "mão invisível" utilizada por Adam Smith, expressão que não quer dizer outra coisa que a mecânica que faz funcionar o homo oeconomicus enquanto sujeito de interesse individual no interior de uma totalidade que escapa a cada sujeito mas que funda a racionalidade das suas opções egoístas.

A mão invisível configura certamente um otimismo econômico. Resto de um pensamento teológico? Lugar vazio secretamente ocupado por um deus providencial? Talvez, pois se por um lado ela é a ideia de que existe uma transparência essencial nesse mundo econômico para um olhar cuja mão ataria os fios de todos os interesses diversos e “dispersos”, por outro a totalidade do processo econômico escaparia a cada um dos sujeitos, aos homens econômicos. Transparência para um olhar que é de ninguém; opacidade da totalidade do processo para os sujeitos envolvidos na vida econômica.

Em resumo, as pessoas, que sem saber porque ou como, seguindo os seus próprios interesses no fim das contas contribuem de forma proveitosa para todos: quando cada um pensa no seu próprio ganho a indústria inteira sai ganhando. Por isso é bom que só se preocupem com os seus próprios interesses, pois, do contrário, quando se preocupam com o bem geral, as coisas não dão certo. O bem coletivo não deve jamais ser visado exatamente porque ele não pode ser calculado: é necessário que cada um dos atores seja cego à totalidade, seja incerto quanto ao resultado no plano coletivo.

Da expressão mão invisível o que geralmente se enfatiza é a “mão” e se deixa de lado o “invisível”. A “mão” é a providência que ataria os fios dispersos; o “invisível” é a não transparência da totalidade do processo que impede que qualquer agente (econômico ou político) particular possa buscar o bem coletivo. O que quer dizer que, um governo, pautado por tais princípios, não deve criar obstáculos aos interesses de cada um, como também ele não deve tentar combinar artificialmente esses mesmos interesses, pelo motivo de que ele não tem sobre o mecanismo econômico um ponto de vista que o totalize. Mão invisível é o nome tanto da combinação espontânea dos interesses que impede toda intervenção artificial quanto da impossibilidade de todo olhar que se pretende totalizante. Todo olhar global não vê mais que quimeras. A economia política denuncia, no séc. XVIII, o paralogismo da totalização política do processo econômico. Por fim, a economia não pode deixar de ter “vistas curtas”. Nenhuma razão é suficientemente ampla para dar conta da totalidade do processo econômico. O mundo econômico é opaco por natureza.

É dessa impossibilidade de totalização que se pode afirmar que a economia é uma disciplina sem Deus. É ela, alíás, que denuncia a impostura de todo olhar pretensamente metasituado, transcendente. Alertando o soberano quanto a qualquer delírio de onipotência/oniciência ao querer exercer sobre o homo oeconomicus um poder que não tem, a economia diz: “tu não deves porque tu não podes; tu não podes porque tu és impotente; tu és impotente porque tu não sabes; tu não sabes porque tu não podes saber”. A economia política, enfim, é uma crítica da razão governamental, uma crítica que marca um limite além do qual todo projeto de uma economia planificada, dirigida, ou toda sorte de socialismos não poderá ultrapassar, pois do contrário não simplesmemte cairá em contradições, mas conduzirá a nação arrogante a um verdadeiro colapso, isto pelo fato de que não é possível existir um soberano econômico. Eis porque o bom governo é aquele que governa com a economia em vez de governar a economia.

Formas de ver

A questão que vem à tona quando estamos diante de trabalhos pictóricos tão diferentes entre si é: mas como vê-los? Postos lado a lado, por exemplo uma pintura acadêmica, figurativa, realista, ao lado de outra pós-impressionista, o que mudou? Da fidelidade aos objetos representados a impressões visuais construídas por meio de cores e formas na composição do que não tem correspondência no “mundo”, terá o objeto mesmo dessas artes se deslocado? Uma maneira possível de compreendermos o que estava em jogo pode ser através do surgimento da fotografia, evento tão marcante para as artes voltadas para o “olho”. Qual foi o papel desse meio técnico de representação do real, que é aparelho da câmera fotográfica, para a história das formas de ver flagrada na mudança das formas de pintar?

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Bolsonaro, um subversivo

Um Bolsonaro presidente traz à tona um descompasso fundamental entre uma coisa e o lugar que essa coisa ocupa. É como a arte ready-made, de Marcel Duchamp, A fonte (1917): um urinol de porcelana branco exposto no museu. O "lugar" que o urinol ocupa aberto pelo espaço de um museu confere à peça o mesmo status que somente as "verdadeiras" artes possuíam. Mas um urinol? Nada parece tão distante de fruição artística quanto aquilo para que um urinol serve. Quanto ao Bolsonaro, não seria ele também o estranho ocupante de um "lugar" que se supunha de valor elevado (o cargo de presidente)? Seu modo tosco, rude, assim como a trivialidade de um urinol, o uso que se faz dele, sua forma que em nada sugere o que se entende por beleza, tudo isso traz à tona um desencontro fundamental do "objeto" com o "lugar" que esse mesmo objeto ocupa. Anunciado por Duchamp e confirmado por outra figura como Donald Trump e agora Bolsonaro, esse desencontro talvez constitua uma importante chave de interpretação para uma série de eventos nos mais variados campos. Se diante de um urinol no museu nos perguntamos "isso é mesmo arte?", é diante de um Bolsonaro que nos perguntamos: “afinal, o que é a presidência de um país?” Se hoje uma figura como a de Bolsonaro cola ao cargo que certamente ocupará é porque ultrapassamos o último fio de aparência que sustentava todo o edifício da República. Estar diante de Bolsonaro é não saber ao certo do que se está diante. E se o que antes era piada e hoje não é mais é porque a fratura da realidade, marcada pelo desacordo entre o "objeto" e o "lugar", foi exposta. O feito subversivo de Duchamp, além de ter posto a nu esse desacordo, mostrou que todo desmonte de qualquer formação (política, estética) só pode se dar a partir de dentro. Pouco ou nada adianta afirmações do tipo "o capitalismo é injusto", "na política só há canalhas", "a estrutura dos museus é a expressão de classe" etc., pois partem todas elas "de fora" daquilo que pretendem "ajustar" ou destruir. A verdadeira subversão ou parte "de dentro" ou ela não existe por sua ineficiência. Da mesma maneira que o urinol de Marcel Duchamp no campo das artes, Bolsonaro no campo da política leva ao limite a contradição inerente até a mais completa implosão da formação que a traz em seu cerne, o desacordo radical entre o "objeto" e o seu "lugar" na estrutura. Talvez seja isso o que devemos entender por contradição, aquela mesma a que já se referiram como o motor da história: revelado o caráter obsoleto de uma determinada ordem que distribui os lugares (de presidência, das artes, do belo), é iminente uma reestruturação absoluta a que muitos chamam de Revolução.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Pulsão

Da mesma forma que a culpa é anterior ao crime – todo ato delituoso visa a dar corpo a uma falta que o transcende –, o sonho pelo fim, pela destruição total é anterior à guerra. O que é a bomba atômica se não o aparelho que materializa o nosso sonho por uma interrupção radical? Parece que não basta morrer porque morrer talvez seja muito pouco. O desejo mais fundamental é mesmo o de que tudo desapareça. E não se trata de qualquer desaparecimento, mas sim daquele com efeitos retroativos, isto é, com um alcance tal que não permite que sobreviva nenhuma memória em que estaria registrado tudo o que já foi vivido. Então, não é que deixaremos de viver, mas sequer chegamos a existir. A teologia, apropriando-se desse desejo, fala do “apocalipse”; quanto aos tempos atuais, tempos sem Deus, que nome dão ao nosso sonho secreto de morte absoluta?

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Inconsciente e política

Bolsonaro é o curioso caso de um meme elevado à categoria de presidenciável. Mas o que é um meme? Surgido nos anos 1970, o termo se refere ao que se espalha no campo da cultura com a mesma facilidade, intensidade e poder com que um virus se espalha num organismo. Não é sem propósito a expressão "viralizar" para se referir ao que se difunde com rapidez nas e pelas redes. Bolsonaro viraliza porque aquilo é um meme, isto é, passa pelo que há de mais obscuro em cada um. E já estão contaminados por esse elemento ambíguo não só os que falam bem dele como também os que falam mal, basta ver como esse nome "Bolsonaro" brota por todos os lados como de um fonte perene. Espécie de peste circulando no espaço simbólico, seja na raiva ou na paixão, ódio ou amor, é uma dimensão primitiva em nós mesmos e no outro com que estamos todos lidando. Por que isso é tão espantoso? Porque o que se vê é o inconsciente, em seu aspecto mais selvagem, aflorando na política.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Emoticons

Os emoticons talvez sejam o que há de mais intrigante neste mundo novo recém surgido da vida digitalizada, pois são eles a padronização de nossas reações, que, restritas a um número limitado, só têm seu espectro de possíveis ampliado se baixamos "pacotes" com carinhas novas e outros ícones. Mas e quanto àquelas sensações ainda sem margem e contornos? Sobrevivem em intensidade se capturadas por alguma dessas "figurinhas"? Se toda a graça de se apaixonar, por exemplo, está na experiência mesma de uma sensação nova, inesperada, resultante de um deslumbre que escapou a todo cálculo, nem imagino como serão os amores de amanhã.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Circular

Louva o centro e o estável
o que se movimenta
num percurso orientado
pelo fim a que se encaminha,
pela origem de que não se desprende.
Com tal modelo de movimento,
na trajetória percorrida
o “herói” da aventura rasa
viaja a falsa viagem e colhe
pouco do que se lhe oferece:
sempre à distância e
no conforto das garantias,
é incapaz de enfrentar
os riscos dos rios de risos.
Para bem caber dentro de si,
jamais se desamarra da
sua imagem-cápsula e
atravessa o espelho.
Se lançado no continente
das incertezas busca ele
o firme das pedras nas
coisas que consome,
como na música que ouve,
que o leva mas que não
deixa de trazê-lo de volta;
não sendo ela “o barco bêbado”,
não faz mais que “dar um giro”
em torno de um eixo
“imóvel”, o centro tonal.
Deus é a nostálgia do fixo.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Alguém disse "riqueza da vida interior"?

Há algo de falso na “vida interior”. Espécie de abrigo para certos "inconvenientes" da vida social a que nos submetemos, a vida interior, com toda a sua "riqueza", é como um biombo que nos afasta da realidade daquilo que somos, sobretudo nas considerações íntimas, nas variadas maneiras de se referir a si, pois se fundam sobre uma cegueira quanto a verdade daquilo que se é. Narciso é o maior dos iludidos. Por isso é preciso escapar do perigoso vício da profundidade e reconhecer que somos aquilo mesmo que aparentamos ser, que as nossas aparências revelam de nós mais do que gostaríamos de admitir: a nossa transparência nos denuncia. Portanto, não é "do lado de dentro" mas "do lado de fora" que está a verdade. O que “lá dentro” de nós nos contamos que somos é apenas o que pensamos ser. Há verdade nas aparências e não na interioridade dos nossos discursos mais íntimos, nosso "monólogo interior". O efeito dessa duplicação entre o que interiormente se pensa ser e a forma pela qual se dá o reconhecimento por parte do outro não passa de artimanha de afastamento da verdade de um desejo que se realiza no dia a dia. Os doces recantos da vida interior, os projetos grandiosos, os sonhos mais íntimos, tudo isso não é outra coisa que o esforço de nos refugiarmos de nossa própria pequenez. É vã toda tentativa de se decifrar com palavras, narrar-se “internamente”, contar para si acerca de si. Tagarela e barulhenta, a consciência é uma das vozes da loucura no silêncio da cabeça de cada um, voz regida sabe-se lá por que forças e que jamais irá se calar. A esse respeito, Žižek diz que

Nossa experiência mais elementar de subjetividade é a "riqueza da minha vida interior": é isso que "realmente sou", em contraste com as determinações e responsabilidades simbólicas que assumo na vida pública (pai, professor etc.). Aqui, a primeira lição da psicanálise é que essa "riqueza da vida interior" é fundamentalmente falsa: é um biombo, uma distância falsa, cuja função, por assim dizer, é salvar as aparências, tornar palpável (acessível a meu narcisismo imaginário) minha verdadeira identidade simbólico-social. Assim, um dos modos de praticar a crítica à ideologia é inventar estratégias para desmascarar a hipocrisia da "vida interior" e suas emoções "sinceras". A experiência que temos de nossa vida por dentro, a história sobre nós que contamos a nós mesmos para explicar o que fazemos é mentira; a verdade está, antes de tudo, do lado de fora, naquilo que fazemos. (...) As "histórias sobre nós que contamos a nós mesmos" servem para confundir a verdadeira dimensão ética de nossos atos. (Slavoj Žižek, Primeiro como tragédia, depois como farsa, P. 44)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

A linguagem, a verdade, a consciência e o medo

É suposto que a linguagem seja o meio de conhecimento do que se considera poder conhecer. Para isso, ao tornar-se conceito teve a linguagem que se esquecer de sua origem metafórica. Conhecer é um processo, como disse Nietzsche, de “igualação do não igual”, de redução do múltiplo, de abandono e desconsideração das diferenças que fazem do que é individual o indivíduo que se é. E qual é o custo disto? Um empobrecimento da experiência. Sendo metafórica a verdadeira natureza da linguagem, originalmente ela não empobrecia o que quer que tocasse por preservar o valor de individualidade do que é singular. Ou, melhor dizendo, talvez ela não tocasse em nada além de si própria. Mas eis o grande engodo em que se enredou: transformada em conceito, quer sair de si para chegar às coisas e dizê-las como elas são. É deste esquecimento de sua origem que resulta o sentimento da verdade, processo no qual quem perde é a vida.

Frio e abstrato, o conceito faz a mediação da relação do homem com o mundo, padronizando, a partir de uma espécie de regra do bom senso, as impressões que este homem tem. Soará delirante toda impressão que não possa ser universalisada, isto é, que não possa ser reconhecida, integrada a um quadro geral e comum assegurado pelos “homens”. Não é dificil enxergar que por trás dessa vontade de conhecimento há uma outra vontade, a de estabelecimento de vínculos para fazer do outro o seu próximo, a necessidade de uma vida em rebanho para que desapareça o perigo de morte que um homem representa para outro homem. Dito isto, quem poderia ser o mentiroso se não aquele que rompe com o poder que separa o falso do verdadeiro? Não existe figura de maior risco do que este que não consente com a verdade. Nocivo àqueles que aceitaram a legislação da linguagem, o mentiroso é quem engendra prejuízos sem medida à vida em rebanho.

A linguagem enquanto conceito é comunicação. Comunicar é a ação de "tornar comum". E toda comunicação, em última instância, é mando de um e obediência de outro. É nestes homens que nasce a consciência, sobretudo nos que obedecem. Estar dotado de consciência é estar alienado ao outro, ser regido por seus comandos de ordem. Da necessidade do vínculo nasce a consciência. O homem consciente precisa sentir-se protegido. Sob a consciência, então, existe o medo. Rasa, ela só é capaz de reter para si quase nada do que se passa, ela é um “dar-se conta” disso ou daquilo, mas sempre de uma mínima parte e a mais superficial do que se passa nesta ovelha branca. A consciência não é o mesmo que pensar e é como uma doença.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A mentira como a verdade do amor

O AMOR, à luz da verdade de seus efeitos, é na sua essência nada mais que decepção. O homem romântico, vítima de uma triste narrativa, padece de um drama que é o da impossessão. Mas esse sujeto que se deixa conduzir pela melancolia, o que é que ele não possui? Ora, não possui um determinado mundo para cujo funcionamento ele é absolutamente dispensável. Trata-se do mundo da sua amada. Mas pior do que não possuir é não pertencer. Por uma necessidade estrutural, este avaro de uma ilusão se encontra excluído desse mundo desde sempre por sua condição mesma de amante. E disso ele sabe muito bem, pois o ciúme, sombra escura do amor que sente, sintoma do seu sentimento, é o sofrimento de não participação daquilo que mais anseia, que é a vida daquela que tanto ama. Aprofundar-se em certas pesquisas, do tipo: “quem é ela quando não estou por perto?”, é correr o risco de ter desmentida a representação pouco fundada que tem dessa mulher, posto que a imagem que dela ele construiu se valeu de signos já comprometidos. Ele é como o crente ou o filósofo dogmático que inventa mil peripécias e métodos querendo ter acesso ao que acontece lá onde o seu olhar não entra. Os carinhos oferecidos pelo seu amor, as palavras e juras proferidas, tudo isso não é outra coisa que o encobrimento da difícil verdade: ambos os mundos nunca serão um único e mesmo mundo; trágicos, estes dois personagens nunca serão um só, nunca terão uma mesma alma, uma mesma carne.

"Os signos amorosos (...) são signos mentirosos que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofundamento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está contido no lema 'amar sem ser amado'." (Proust e os Signos – Gilles Deleuze, p.9)

sábado, 30 de junho de 2018

Sobre o conto O ESPELHO de Machado de Assis

Jacobina, o personagem que narra a sua história em O espelho, afirma, contrariando o senso comum de seu tempo, que em todo homem “não há uma só alma, mas duas. (...) Cada criatura humana traz duas almas consigo”, uma interna e outra externa. Complemento ortopédico da alma é todo objeto que funciona como alma exterior. Através do que nos é narrado, somos levados a reconhecer que existe em nós uma dependência a uma imagem sem a qual não nos constituímos num eu. É isto o que significa o imaginário como a dimensão fundamental constitutiva do sujeito. O eu não se constitui se não se reconhecer em alguma coisa que vem de fora, numa imagem externa que o espelhe. (Cf. o texto de Lacan: A etapa do espelho e a formação do eu.) A constituição psíquica é dependente de sua imagem alienada, externa. Sendo o homem um ser que depende de alguma coisa que está fora dele, isso nos permite compreender a natureza do outro e o seu carater ameaçador. Por que o outro me ameaça? Porque ele pode roubar de mim a minha imagem. A isto Freud chamou de Narcisismo das pequenas diferenças. (Cf. o conto de Machado Verba testamentária.) A psicose seria a falta de referência especular, materna - é a desagregação do eu, como no filme Psicose, de Hitchcock. A alma externa é essa referência a ser "encontrada", o complemento ortopédico da alma "interna".

Sem a imagem, qual é o sentimento que a criança tem de si? Ela é um feixe de sensações, estímulos, prazeres e desprazeres disparatados. A essa visão espasmódica de si, como encontramos em O Espelho de Guimarães Rosa, se opõe a imagem no espelho. Mas o que é um espelho? É tudo aquilo que mimetiza alguém. É da mímese de onde vem a unidade desse alguém. Um adulto pode mimetizar uma criança, servir-lhe de espelho. Quando ele a mima ele está mimetizando-a, isto é, está dando a ela uma referência de si própria. Como no conto, todos mimavam o Jacobina. Depois de os escravos fugirem, ele torna-se ninguém. Machado descreve, então, a dinâmica desse nada/ninguém em que as relações de trocas imaginárias estão ausentes. Quando ele olha para o espelho esperando ver dois, ele vê nenhum. A imagem não se forma. Vê apenas os vestígios de um corpo que não comparece. Primeiro, somos nada. Depois, somos dois. Por fim, somos um quando o eu se forma (pela imagem).

Nascemos pré-maturos, nascemos feto. Para nos constituirmos, todo o equipamento das imagens, dos símbolos, das palavras. A falta e o jogo de imagens estão por toda parte. Mas uma imagem nunca nos representa plenamente. Não seria a compreensão disso o que visaria um processo de análise? Que outras imagens nossas podem e devem ser construídas? Não se trata, portanto, de uma procura, mas de uma busca, de uma construção. A farda é um valor que reconstitui o Jacobina, farda de Alferes, patente de algum prestígio embora a mais baixa da Guarda Nacional (instituição do período do império). Os alferes tinham algum poder de mando e estão na base do mandonismo brasileiro.

O conto adquire grande riqueza se o lemos a partir dos três registros de que fala a psicanálise. São eles: o real (o vazio aterrorizante experimentado na ausência do outro de cujo olhar depende a minha identidade), o imaginário (as almas externas nas quais me alieno e que “tapam” o real) e o simbólico (o meio pelo qual administramos o fato de nunca termos de nós uma imagem plena). Um outro conto de Machado, A teoria do medalhão, é sobre um pai que ensina ao filho como melhor investir-se de alma externa. Trata-se de uma prática cínica em oposição a uma prática clínica (psicanalítica).

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Sobre uma possível contribuição do pensamento de Slavoj Žižek para o ensino da disciplina de filosofia

1 – Os primeiros anos de atuação de um professor de filosofia em sala de aula são aqueles em que ele se depara pela primeira vez com determinadas dificuldades relacionadas direta e especificamente à sua prática enquanto docente. Uma delas é o risco de a disciplina que leciona tornar-se um discurso, se não vazio, no mínimo chato na perspectiva dos alunos. No caso de estudantes do ensino médio ou dos anos anteriores, será que isso se daria em razão da pouca idade deles? Sim, se o ensino dessa disciplina prender-se à mera transmissão de conceitos excessivamente precisos, ensino por demais informativo e “erudito”, se as questões trazidas por ele requererem vivência e maturidade intelectual por parte dos ouvintes. É neste sentido que François Lyotard escreve que a escola “atira” para

o curso filosófico espíritos que lá não entram. A sua resistência parece invencível, precisamente porque não tem por onde se lhe pegue. Falam o idioma que lhes ensinou e ensina o mundo, e o mundo fala velocidade, gozo, narcisismo, competitividade, sucesso, realização. O mundo fala sob a regra da troca econômica, generalizada sob todos os aspectos da vida, incluindo as afeições e os prazeres. Esse idioma é completamente diferente do idioma do curso filosófico, é-lhe incomensurável. Não há juiz para decidir este diferendo. O aluno e o professor são vítimas um do outro. A dialética ou a dialógica não pode ocorrer entre eles, apenas a agonística. (LYOTARD, 1993, p. 125)


Mas, por outro lado, não, pois

seja na criança, seja nos jovens ou nos adultos, a busca da verdade está sempre ligada a uma decepção, a uma desilusão, a uma dúvida, a uma perplexidade, a uma insegurança ou, então, a um espanto e uma admiração diante de algo novo e insólito. (CHAUÍ, 2000, p. 113)


As citações acima demarcam dois pólos opostos, sendo a passagem do primeiro para o segundo o que pretendemos pensar. Na citação de Chauí, a “busca da verdade” tem em sua origem o que exprimem os termos “decepção”, “desilusão”, “dúvida”, “perplexidade”, “insegurança”, “espanto”, “admiração”, “novo”, “insólito”, todas elas expressões que apontam para uma quebra na normalidade, para um rompimento no fluir natural dos eventos. Dito isto, o interesse por filosofia, ao menos em potência, é na verdade de todos, mesmo que muitos ainda não saibam disso. (Essa afirmação nos remete àquela de Lacan em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, que diz “ser filósofo quer dizer interessar-se por aquilo em que todo o mundo está interessado sem saber.”) Como, então, pôr em prática um ensino de filosofia que vá ao encontro do aluno, que o capture em seu vivo interesse, naquilo em que se vê implicado, pelo tema de debate trazido à sala pelo professor? Em poucas palavras, o que estamos propondo pensar é o desafio do ensino de filosofia para “não-filósofos”, isto é, estudantes em idade escolar com interesses diversos que não se relacionam direta e necessariamente com filosofia.

Mas não é apenas isto. Se parássemos neste ponto no que estamos propondo nada de verdadeiramente novo estaria sendo proposto. Como não é pequeno o número de autores com “metodologias” de ensino de filosofia, não temos aqui a pretensão de nos somarmos a essa lista, mas de estabelecer um diálogo com algumas dessas propostas a partir de considerações feitas pelo filósofo e psicanalista Slavoj Žižek acerca do que seja fazer filosofia. De que maneira os conceitos com que este autor trabalha poderiam contribuir para pensarmos uma prática de ensino de filosofia, tendo em vista a dificuldade mesma da matéria no que diz respeito tanto a sua forma quanto a seu conteúdo? Cabe aqui lembrar que seus livros são atravessados por referências a filmes europeus e hollywoodianos, a literatura erudita e popular, e até a piadas, recurso que não tem outro propósito que o de facilitar a transmissão de conceitos complexos sem com isso enfraquecê-los em nenhum de seus aspectos.

Para pensar a prática de ensino da disciplina de filosofia é preciso começar com algumas considerações sobre o que seja filosofia. Este questionamento prévio não visaria apresentar o “conteúdo” a ser ensinado, mas que a questão acerca de sua transmissibilidade é antes de tudo um problema filosófico. Portanto, dupla tarefa: primeiro, compreender como Slavoj Žižek estrutura seu pensamento; segundo, como trazer para o debate em torno do ensino de filosofia os elementos determinantes do modo como procedem as análises do pensador esloveno. De que maneira poderia o ensino de filosofia ser orientado a partir desse filósofo? Eis a nossa questão de base.

Os autores com os quais pretendemos dialogar à luz das concepções de Slavoj Žižek são Dermeval Saviani e Silvio Gallo. Partindo da noção de problema utilizada por eles, da variação de sentido nos usos que dela fazem, colocar-nos-emos no centro do debate que envolve o ensino da disciplina.

2 – Faremos uma breve exposição dos autores tomando como fio condutor a noção de problema. Começaremos com Dermeval Saviani para, em seguida, falar de Silvio Gallo e concluir com Slavoj Žižek.

Dermeval Saviani, em Educação: do senso comum à consciência filosófica, pergunta acerca da problematiciade do problema. O contexto de sua colocação é a tentativa de compreender a importância da filosofia para se pensar a educação, do significado de uma filosofia da educação: “Em que a filosofia poderá nos ajudar a entender o fenômeno da educacão?” (SAVIANI, 1996, p. 9) Para respondê-la, porém, ele levanta uma outra, a da “função da filosofia em si mesma”.

O que leva alguém a fazer filosofia? Na trilha da argumentação do autor, não sendo o filosofar uma atitude natural e espontânea do homem, o que faz deflagrar o pensamento filosófico é precisamente o que chama de problema. Mas o que é um problema? Existir é agir, sentir, pensar no mundo cuja normalidade pode ser interrompida por algo. A filosofia começa por um questionar acerca desse algo que interfere, que modifica a ordem a que toda marcha regular está submetida. Problema é o nome desse algo que confere urgência ao pensamento filosófico. Em poucas palavras, o objeto da filosofia “são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência.” (SAVIANI, 1996, p. 10) Mas um problema nele mesmo não é a priori exclusivo a nenhum campo específico, podendo ser ele visado pelas artes, religião, ciência ou senso comum. A abordagem filosófica de um problema consiste numa atitude específica.

Para pensar o problema, faz-se necessário recuperar a problematicidade que o termo implica. Para tanto, é preciso esclarecer algumas possíveis identificações ao termo distinguindo-o de alguns outros comumente considerados como sinônimos. Alguns destes termos são questão, mistério, dúvida. Em relação ao termo questão, Saviani nos fornece o seguinte exemplo: uma questão de prova diante da qual um aluno se encontra, mesmo que ele não saiba respondê-la, sabe que o professor sabe a resposta e que desse aluno espera a resposta correta. Ou seja, trata-se de uma questão e não de um problema, porque a sua resposta, apesar de o aluno a ignorar, é já conhecida. Mas e se a resposta a uma determinada questão não for conhecida por ninguém, como é o caso dos mistérios e enigmas, se estaria então diante de um problema? O autor argumenta que problema também não é sinônimo de mistério ou enigma, pelo motivo de que na experiência religiosa mistério pode mesmo ser a própria “solução” de todos os problemas, mistério enquanto objeto de fé. É precisamente no desconhecido que o crente confia. A radicalidade de um autêntico problema é tal que não apenas as estruturas do conhecido perdem qualquer estabilidade mas também aquelas do desconhecido em que se baseia a fé do crente. Quanto ao termo dúvida, termo a que problema também não deve ser identificado, nele vemos implicado possibilidades, hipóteses igualmente válidas mas excludentes quando se está frente ao que quer que se apresente como duvidoso. A dúvida não clama por uma solução necessária: “é perfeitamente possível manter as duas hipóteses sem que isto represente problema algum.” (SAVIANI, 1996, p. 12) A dúvida quanto ao que fazer numa noite de sexta-feira, por exemplo, não configura um problema.

O que seria, então, um problema verdadeiramente problemático? Se problema não é o mesmo que questão, mistério ou dúvida, qual é sua essência? Segundo o autor, a necessidade é traço essencial da problemática do problema. Uma questão, que em si mesma não constitui um problema, tornar-se-ia problemática se a resposta a ela seja aquela sem a qual a continuidade mesma da existência estivesse sob ameaça. Essa nota essencial da nessecidade determinante do conceito de problema também vale para dúvida. A dúvida problemática é aquela que, por uma necessidade interna de ser superada, não poderia não ser dissipada.

Como se experimenta um problema? Haveria tantos problemas quanto indivíduos, uma vez que quem os experimenta são os indivíduos? Um problema é vivido por alguém mas não é meramente subjetivo ou psicológico. Como Saviani coloca, a existência dos homens, construída a partir de circunstâncias objetivas dadas previamente, traz consigo impasses concretos que ultrapassam o âmbito invidual, desafios reais consequentes de uma realidade histórica compartilhada. Eis o que será afrontado pela reflexão filosófica.

A reflexão do tipo filosófica possui algumas características. Segundo o autor, são elas a radicalidade (isto é, que se deve ir até as raizes do problema), o rigor (isto é, que se proceda de forma sistemática) e a globalidade (isto é, que o problema não seja examinado parcialmente mas numa perspectiva de conjunto). Na consideração deste último aspecto Saviani coloca a reflexão filosófica como a atitude mental que está na origem da própria prática científica, esta diferenciando-se daquela por sua localidade, por sua delimitação a um objeto específico.

3 – Quanto ao professor Silvio Gallo, autor de um trabalho intitulado Metodologia do ensino de filosofia, a partir das formulações de Deleuze e Guattari sobre o que seria fazer filosofia ele propõe pensar um processo educativo de filosofia que “não seja um mero ‘contar histórias’ e seu estudo um mero ‘escutar histórias’”. (GALLO, 2012, p. 71) Trata-se mesmo de um desafio não reduzir o ensino de filosofia à transmissão de conteúdos de história da filosofia e seu aprendizado à sua simples assimilação. É em relação a essa concepção prévia do que seja o ensino da disciplina, sustentada por uma “imagem do pensamento”, que o autor quer tomar distância a fim de pensar uma outra didática possível. Como promover em sala de aula uma prática que vá além do “pensar o já pensado”, da memorização do que é ensinado pelo “explicador”?

“A filosofia, esse conhecimento aberto por excelência,” (GALLO, 2012, p. 70) é a disciplina onde outra ideia do que seja compreensão deve ser considerada. Para tanto, cabe a ela pensar outro horizonte de entendimento no interior do qual se possa pensar um processo de ensino que se caracterize como uma prática viva, que convoque o aluno à atividade durante o seu desenrolar (um ensino ativo e um aprendizado ativo). Como pretendemos mostrar, o autor quer pensar outra concepção de ensino de filosofia que “aposta mais no problema do que na solução.” (GALLO, 2012, p. 70) Ao contrário da lógica da explicação de trazer soluções, o ensino vivo e ativo de filosofia considera o problema como o verdadeiro motor do pensamento.

Sendo a noção de problema noção central para o que está sendo proposto, como levar o aluno a exprimentá-lo? É fazê-lo passar pelo “sentimento de ignorância” ou “sentimento filosófico”. A expressão também é de Rancière, e quando Gallo faz uso dela é porque a considera fundamental tanto para os estudantes quanto para os professores. Sendo o “sentimento de ignorância” ou “sentimento filosófico” elemento necessário a todos os envolvidos no processo de ensino/aprendizagem, ele é a tomada de distância das verdades cristalizadas. Tal capacidade de estranhamento, cultivada por uma sensibilidade que nunca se entrega ao caminho preguiçoso de reconhecimento do que se apresenta como “óbvio” e “evidente”, constitui a entrada no problema.

Se para Silvio Gallo a prática da filosofia não consiste na solução de problemas, como já dissemos, ela, no entanto, é criação de conceitos. Compreender a filosofia como um processo de criação é condição básica para se afastar de um ensino enquanto recognição, isto é, de um ensino como reprodução do já conhecido, do já pensado. É essa a tese de Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?, pois o que pretendem com tal compreensão é pensar a filosofia como o pensamento da diferença e não como representação.

Para sermos breve, organizamos em momentos a maneira como Gallo desenvolve o trabalho que propõe. Acreditamos que da explicitação dessas etapas resultará clara compreensão da relação entre problema e criação de conceito:

a) Primeiro, experimentar um problema filosófico por meio do contato com um tema que afete o estudante. O tema poderá ser o de um filme, um poema, um conto, uma música, uma pintura, desenho animado, história em quadrinhos, etc. A sua relevância estará precisamente no problema que o tema toca, pois é em torno dele que todo enredo/narrativa gira.
b) A segunda etapa consiste na explicitação desse problema que o tema nos pôs em contato. Aqui que se iniciaria a realização de um debate. A dificuldade em pensá-lo evidenciará a necessidade de se ampliar as formas de o alunos pensarem.
c) O recurso à história da filosofia é o passo seguinte. Que conceitos da tradição nos permitirão delimitar o problema trazido pelo tema de modo que o esboço de uma Ideia comece a ganhar contornos? É nesta etapa que o professor terá a oportunidade de fazer com o aluno um percurso pela história da filosofia, mas ele o fará ¬¬– e isso é importante lembrar — a partir de um problema, justamente aquele suscitado pelo tema com que se iniciou todo o processo.
d) O último momento é o de conceituação, isto é, o de criação de conceito, que não significa necessariamente a criação de um absolutamente novo, mas no uso de um já existente mas deslocado do sistema originário de que fazia parte. É esse uso do conceito para pensar um problema específico em que consiste propriamente o ato criativo.

Pensar um problema trazido por um determinado tema à luz de um instrumental conceitual filosófico não significa solucioná-lo. Em filosofia não se soluciona problema, posto que o seu objetivo é essencialmente outro. Podemos afirmar que o objetivo da filosofia, tal como Silvio Gallo o coloca, é anterior a qualquer tentativa de formulação de uma resposta definitiva, é ultrapassar a camada da narrativa literal, seja de um filme, um poema, um conto etc., para aquela do pensamento da obra. Podemos afirmar que a pergunta acerca do que pensa tal filme, tal conto, aquele poema, aquela pintura etc., é o que visa um processo vivo de ensino de filosofia.

4 – A partir do que está sendo apresentado sobre problema em Dermeval Saviani e em Silvio Gallo, de que maneira Slavoj Žižek contribuiria para a prática de ensino de filosofia? Para responder à questão levantada, antes é preciso esclarecer o lugar a partir de onde o esloveno pensa. Na introdução de Interrogating the Real seus editores escrevem que Slavoj Žižek é “estritamente fiel aos seus dois grandes amores, Lacan e Hegel, de quem ele nunca hesitou”. (ŽIŽEK, 2005, p. 2) Em Arriscar o impossível, Glyn Daly escreve que “o paradigma žižekiano (...) extrai sua vitalidade de duas grandes fontes: o idealismo alemão e a psicanálise”. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 9) É dessa articulação estabelecida por ele, portanto, que resulta a originalidade do seu pensamento e onde podemos situar o lugar a partir do qual realiza as suas análises nos campos da política, da cultura e do modo de funcionamento da ideologia no mundo contemporâneo. Mas de que maneira o esloveno faz essa relação entre um autor e outro, entre um importante movimento filosófico, como foi o idealismo alemão, e a psicanálise? A resposta a essa pergunta passa pelo entendimento de como Žižek lê os autores que utiliza. Eis o que consideramos ser chave para a compreensão de seu pensamento.

Sendo modesto o nosso interesse e sem querer estender demais, façamos uma rápida exposição da importância que tem Immanuel Kant para Žižek. Por que Kant? Porque ele foi o filósofo que lançou as bases da filosofia alemã da virada do século XVIII para o XIX, período em que se desenvolveu o idealismo alemão. Para Žižek, esse é precisamente o momento em que a filosofia conquista propriamente o seu terreno, isto é, quando ela deixa de competir com a ciência no tocante ao conhecimento do mundo "exterior" diferenciando-se apenas pelo seu grau de generalidade. Para Žižek, “tudo começa com Kant e com sua ideia de constituição transcendental da realidade.” (ŽIŽEK, 2013, p. 18) Ele diz também que “a filosofia como tal é kantiana (...), [que] é somente com Kant (com a sua concepção do transcendental) que a verdadeira filosofia começa.” (ŽIŽEK, 2008, p. 73)

Muitos poderiam ser os nossos interesses por aquilo que Žižek privilegia na filosofia de Kant, mas por enquanto foquemos num só: a concepção transcendental da realidade. Se o pensamento de Kant foi uma revolução – revolução copernicana na filosofia, como o próprio Kant coloca – é porque ele constitui uma verdadeira virada no modo de fazer filosofia. Não entraremos nos pormenores na consideração dessa “virada transcendental” operada por Kant, mas ela nos diz muito sobre o procedimento levado a cabo por Žižek. A revolução que caracteriza o pensamento de Kant consiste no deslocamento da investigação filosófica: se antes a filosofia visava um conhecimento acerca do absoluto, “exterior” ao sujeito, das coisas-em-si-mesmas, ela se torna justamente a investigação das condições de possibilidade do conhecimento do mundo. Em outros termos, se antes a perguntava era: como é o mundo em si mesmo, fora de mim?, ela passou a ser: quais são as condições de possibilidade desse mundo que percebo enquanto tal?

Aqui se encontra o nosso interesse: em pouquíssimas e simples palavras, estamos às voltas com um questionamento acerca daquilo que estrutura o nosso saber e nossa percepção de mundo, uma investigação preliminar de nossas pré-compreensões que estruturam o nosso entendimento de “mundo”. São “saberes” subjacentes, inconscientes, determinantes do modo como agimos, sentimos, pensamos, opinamos, julgamos, percebemos – capacidades humanas essas referidas a um mundo cuja existência não é em si mas para um sujeito. A pergunta “como é o mundo?” deve ser substituída pela: “por que o mundo se mostra da forma como o percebo?”. Colocada a pergunta em termos transcendentais, a resposta passa necessariamente por uma análise das estruturas a priori do sujeito cognoscente. Em outras palavras, o mundo que aparece para nós tem a sua constituição derivada não do mundo nele mesmo mas de estruturas que se encontram nos sujeitos. Eis o que visa a filosofia transcendental. Žižek nos fornece um exemplo anacrônico a respeito do modo como Aristóteles compreende os seres humanos e vivos em geral: será que o pensador grego estuda o ser, logo toda a sua obra é uma ontologia, ou o que ele nos apresenta são os pressupostos envolvidos na compreensão que se tem do ser, logo o que ele faz é uma análise transcendental? Sem obviamente querer entrar no debate de se a sua filosofia seria ou não uma ontologia, mas apenas para ilustrar essa outra forma de abordagem, Žižek diz que a descrição de Aristóteles de

um ser humano, como aquilo que se move para fora de si mesmo, é menos uma teoria do mundo que uma teoria do que significa dizermos “isto está vivo”; ou seja, ele confronta o entendimento prévio que temos quando, por exemplo, identificamos algo como um ser vivo. Nesse sentido, trata-se realmente de um método hermenêutico, não ontológico. (ŽIŽEK, 2006, p. 38)


Esse mesmo exemplo é repetido em Menos que nada:

Aristóteles se esforça para definir a vida (...) – um ser vivo é algo movido por si mesmo e que tem em si a causa do próprio movimento – ele não explora de fato a realidade dos seres vivos, antes descreve o conjunto de noções preexistentes que determinam o que sempre-já compreendemos por “ser vivo” quando designamos os objetos como “vivos”. (ŽIŽEK, 2013, p. 18)


As análises de Žižek caminham nesse sentido. A filosofia transcendental de Kant e a psicanálise não partem da consideração de que a existência do mundo seja algo que se encontra fora do sujeito, como uma realidade existente em si, nem como uma realidade subjetiva, como concebe o idealismo ontológico, mas precisamente num terceiro domínio, o do transcendental. Então o trabalho, que provisoriamente chamaremos de transcendental-psicanalítico, será discernir as condições de possibilidade de uma determinada realidade, dos modos de concebê-la e, no limite, do próprio aparecer das coisas e do mundo. Qualquer envolvimento com entidades do mundo tem pressuposto todo um horizonte de pré-compreensões que fazem essa mediação.

5 – Duas questões. Primeiro, como o pensamento de Slavoj Žižek se relacionaria com o que pensam os dois outros autores sobre a noção de problema tal como expusemos? Segundo, como os resultados desse diálogo entre autores tão diferentes poderiam contribuir para pensarmos o ensino de filosofia e ampliar suas possibilidades didáticas? Diríamos que a nossa ideia é pensar o espaço da aula de filosofia como aquele em que se promoverá o exercício de uma investigação onde, num primeiro momento, o que viriam à tona seriam as estruturas preexistentes que condicionam o modo como se dá nos alunos o entendimento do mundo. Os alunos, ao entrarem em contato com um determinado tema, junto com o professor iniciariam a análise crítica, por exemplo, por meio de um debate. O tema, cuidadosamente escolhido, poderá ou não ser aquele que produza nos alunos algum estranhamento pelo seu grau de novidade. Mas as tentativas de os estudantes pensarem esse material e as dificuldades ou mesmo impossibilidades com que se depararão para darem conta dele é o que irá revelar os limites conceituais desses alunos diante do tema trazido. Nunca será unânime o sentido que qualquer material terá para eles nem é a procura por um consenso o que deve nortear as aulas. Mas será das múltiplas e variadas opiniões que poderá ser desenvolvido um jogo dialético ao modo socrático a partir do qual os limites dos pressupostos desses alunos poderão ser pontuados, limites em razão dos quais eles se vêem impossibilitados de darem conta do tema de modo satisfatório. A tais limites chamamos de impasses.

Um tema configura um impasse na medida em que põe à prova os limites de nossas pré-compreensões. Chega-se ao seu cerne através de um enquadramento do problema que esse tema figura. Trata-se mesmo de uma busca: do impasse ao problema. Se Saviani e Gallo partem daquilo que chamam de “problema”, a aula de filosofia orientada pelo que estamos propondo quer chegar a ele. Será preciso ultrapassar a camada superficial do tema, o que demandará dos alunos/investigadores o trabalho de reconfigurarem suas compreensões desconstruindo pressupostos. Incapacidade de comentar um assunto, emitir opiniões carregadas de senso comum e repetir clichês são casos que tornam manifesta a realidade dos limites. Mas tem o aluno a consciência disso? A consciência crítica que ele adquire acerca de si é a consciência dos limites de suas pré-compreensões. Para tanto, o passo mais importante a ser dado é o “passo para trás” de repensar a questão, redefini-la, enfim, de efetivamente realizar a busca pela formulação apropriada do problema de modo que se dissipe toda e qualquer mistificação em que o tema possa estar envolto. E pensar o material trazido para a sala é o caminho que a aula deverá percorrer na direção do fim almejado, que é o de ter clareza desses limites que resultam da má formulação do problema. Bem colocado o problema, ele já é a sua própria solução. Eis o que consideramos ser o gesto fundamental que abrirá espaço para o aumento de repertório dos estudantes e ampliação do quadro conceitual que lhes permita enxergar com maior largueza. Se as aulas de filosofia devem ser estimulantes, se elas devem instigar e intrigar os alunos, acreditamos ser esta uma interessante proposta.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Ver

Não pinto, não desenho,
posto que, como acreditam
os cegos no que tocam,
acredito eu no que vejo:
a solidez das coisas
me constrange de
fazer rabiscos,
traçar formas,
duplicar em semelhanças.
Não ousaria um tal sacrilégio.
Reproduzir é reduzir à miragem.
O que sobrevive à sua própria imagem?
De meus olhos dogmáticos me
resta o jogo de deslocar palavras,
que sei não serem coisas mas posições.
E se as mudo de lugar é
porque não as levo a sério.
Como figuras, brincando de montar
sentenças vejo no que dá para,
assim, alcançar algum princípio
de desmanche de todo o visto;
o antes maciço não redunda
em ilusão, mas se multiplicam
as suas camadas, que são,
antes, etapas de mim.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Em si

Um instante acontece sem
tecido algum preexistente a ele;
nenhum espaço, mínimo que seja,
subjaz às coisas antes
de serem elas coisas.
É sobre um fundo de nada
que o que existe se desdobra,
pois não tem do mundo um “fora”
e só o que há, há.
Metamorfósica,
sem forma última
ou primeira,
em fluxo por um ralo
sem o outro lado,
de si para si mesma
a vida escoa
sem porquê.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Breve comentário sobre a Filosofia da Diferença

A filosofia conhece dois modelos de pensamento: o da identidade, inventado por Platão, e o da diferença, levado às últimas consequências por Nietzsche. Mas não se trata de uma mera oposição, pois privilegiou-se um dos termos em detrimento do outro. No ocidente predominou (e predomina) o pensamento da identidade. Em poucas palavras, ele se funda num apego à representação, ao mesmo, ao que é semelhante, o que significa dizer que está referido à noção de um modelo ou ideia, isto é, a um critério eterno (transcendente) que permitiria avaliar aquilo que não é essencial e apontar para o que é simplesmente imagem. O nome dessa imagem destituída de semelhança é simulacro. Há um claro exemplo disso na teologia cristã: Deus fez o homem a sua imagem e semelhança; o pecado é o que retiraria desse homem a sua semelhança com Deus, fazendo dele apenas imagem. À luz do pecado, todo homem é um simulacro. O homem religioso é aquele que se reconhece como cópia sem semelhança, sem identidade com a ideia, simulacro.
O pensamento da identidade promete a este homem a garantia de que as tranformações que percebe nas coisas não prejudiquem aquilo que elas são em essência; que no movimento o idêntico se conserve para que os objetos possam ser identificáveis; que “eu” sempre seja a mesma pessoa em todos os momentos do tempo. A finalidade do pensamento da identidade é a estabilidade de um mundo, reconhecível nas suas mais variadas formas. Então, que toda e qualquer consideração original que se tenha da vida seja posta de lado.
Quanto à filosofia da diferença, em primeiro lugar, ela é crítica à oposição entre identidade e diferença, do primado dado pelo ocidente à identidade. Denuncia que tal privilégio só ocorre por uma razão prática e uma questão de segurança, que reconhecer o que tem de idêntico no que é diferente não é mais que pura conveniência - a lógica da repetição é artificiosa, convencional, e sua razão de ser é orientar nossa relação com as coisas e o mundo.
Posto que seu objeto não é dado de antemão à espera de ser explicitado pelo filósofo, não cabe à filosofia da diferença reconhecer ou desvelar, tampouco pode ser ela reduzida à função de comentar, de refletir sobre o que for, como fazem os saberes metalinguísticos. Se a filosofia da diferença nem descobre ou comenta, o que ela faz é criar conceitos e os relacionar, isto é, faz nascer o novo, faz aparecer aquilo que não existia. A filosofia é uma teia de relações conceituais inventada.
Portanto, escapar do pensamento que violentamente subordina a diferença à identidade é arriscar deslocar-se no espaço do pensamento sem imagem, “lugar” da diferença. A realidade da diferença só é liberada se se rompe com o conforto do espaço da imagem do pensamento (aquele da representação), dogmático, metafísico, moral, racional, transcendente. O outro espaço, o do pensamento sem imagem, ao contrário, é pluralista, ontológico, ético, trágico, imanente.
Afirmar a diferença é afirmar o singular.